Não é todo dia que um filme consegue ultrapassar 1 milhão de espectadores em apenas duas semanas de exibição, com salas lotadas com antecedência. É certo que a recepção de "Ainda Estou Aqui" no Festival de Veneza e o prêmio de melhor roteiro colaboram com isso. Mas "Bacurau", há alguns anos, ganhou um prêmio até maior, o Especial do Júri, em Cannes e, depois de toda a carreira em cinemas ser encerrada, não tinha chegado ao milhão de espectadores.
É certo que "Ainda Estou Aqui" se beneficiou de vários fatores laterais. Trata-se do que a publicidade costuma chamar de "uma história real". Tem no centro uma mulher que supera uma situação tremendamente adversa —Eunice Paiva—, interpretada por Fernanda Torres, uma atriz carismática e que, no mais, tem uma interpretação discreta e muito eficiente.
O roteiro é claro e objetivo, evita cair em armadilhas —como deter-se no acidente que deixou Marcelo Rubens Paiva tetraplégico—, trabalha muito bem as elipses e faz o filme avançar sem trancos. É possível dizer ainda que Walter Salles Jr. é uma pessoa vista com simpatia pela mídia —e, não à toa, ele é uma pessoa simpática.
Mas é possível observar, ao mesmo tempo, alguns limites. O filme quase esconde o fato de Rubens Paiva ter sido um homem bastante envolvido com política. Foi deputado, cassado pelo regime militar e é improvável que sua prisão —arbitrária, sabe-se— tenha acontecido sem nenhuma causa determinada, uma delação ou algo do tipo.
Não é uma omissão casual. Ela praticamente induz à crença de que Paiva era apenas um engenheiro empenhado em construir uma casa. Isso não significa nem mesmo que ele tivesse envolvimento mais profundo com alguma organização guerrilheira, mas introduz uma contradição na narrativa.
Essas contradições não convêm a Salles, cujo estilo tem por característica passar ileso por esse tipo de obstáculo.
E esse talvez seja essa uma enorme virtude do filme, conforme me disse uma especialista em filmes brasileiros de grande bilheteria —ele sabe como evitar as pequenas armadilhas que poderiam prender o filme a isso que se chama "a bolha".
Ressalta-se o caráter heroico, como se diz, da atuação de Eunice. Com efeito, é por buscar informações sobre o marido que ela acaba jogada numa masmorra. Após perder a esperança de revê-lo, comporta-se como uma mãe exemplar, que se torna advogada especializada em direitos humanos ao mesmo tempo em que se ocupa dos filhos, de modo a que todos possam estar juntos e, apesar das marcas, tão unidos como no tempo em que o pai era vivo.
Por isso mesmo é possível perguntar por qual razão, se somarmos a audiência de todos os filmes de Lucia Murat —para dar exemplo de uma cineasta bem íntima de questões como tortura, arbitrariedades e tudo mais de infame praticado pela ditadura brasileira—, fica longe de alcançar a marca a que "Ainda Estou Aqui" chegou em duas semanas.
Murat é uma cineasta que enfatiza o caráter político da ditadura. Walter Salles consegue diluir habilmente esse caráter sob o melodrama familiar —a dor da mulher, seu valor, a atenção à família passam à frente.
É desse modo que o autor consegue contrabandear o sequestro, tortura, assassinato e ocultação do cadáver de Rubens Paiva sem ofender o espectador e a espectadora talvez conservadores, porém civilizados, que não suportam saber como um homem de valor pode ser vítima de tais barbaridades —sem contar as que vitimaram Eunice.
É importante dizer que "Ainda Estou Aqui", por mais que se note seus limites, não se confunde em momento algum com "O que É Isso Companheiro?", de Bruno Barreto, onde inocentes estudantes são mal orientados por militantes maduros e mal-intencionados.
"Ainda Estou Aqui" não ofende nem mesmo esses senhores de Higienópolis, que em algum momento talvez tenham achado boa essa ideia de ditadura —ou autoritatismo—, que flertaram com ela, mas perceberam os riscos que traz para as pessoas.
Por isso mesmo o Rubens Paiva de "Ainda Estou Aqui" não é um personagem político, mas antes de tudo um pai de família. Por isso mesmo somos tentados a vê-lo como "inocente", quase apolítico e, por isso, vítima de uma injustiça.
Se não fosse assim, talvez o filme tivesse, até agora, uns 50 ou 100 mil espectadores e estivesse a caminho de ser ejetado das salas de exibição.
Acima de qualquer consideração subjetiva, o filme é um sucesso fabuloso e caminha, célere, para se tornar um mito. Para terminar: o cinema brasileiro precisa, mais do que nunca, de sucessos estrondosos como não se conhece desde a morte de Paulo Gustavo.