Análise: Almodóvar mostra em livro que sua escrita se sustenta sem imagem

há 4 meses 23

Pedro Almodóvar nunca foi um cineasta discreto ou reservado diante de sua obra no cinema. Em sua produção escrita, no entanto, parece não apenas tímido perante o que ele mesmo já produziu como um bocado rígido com sua própria capacidade de escritor.

"O Último Sonho", coleção de contos feitos pelo diretor e escritor espanhol ao longo de seis décadas, mas por pudor ainda mantidos inéditos, traz uma introdução escrita por ele mesmo em que explana melhor do que ninguém o que virá a seguir no livro. Trata-se de um prefácio valoroso e quase definitivo —traz contexto sobre a fabricação de cada narrativa e análises pertinentes sobre elas.

O livro começa mal, pelo que talvez seja o pior conto. "A Visita" é a história de uma mulher extravagante, que procura um padre para lhe falar sobre seu irmão falecido, que havia sido o queridinho do religioso nos tempos em que era uma criança. Sim, logo de cara, o leitor percebe que foi dali que Almodóvar tirou a ideia para "A Má Educação", de 2004, em que Gael García Bernal protagoniza uma cena semelhante.

Mas o conto não redunda em grande coisa para além do que já esperávamos. O segundo, "Mudanças de Gênero em Demasia", já é um bocado superior. E, mais uma vez, notamos que acabou inspirando um filme —"Tudo Sobre Minha Mãe", de 1999. As obsessões almodovarianas de praxe estão lá —Blanche Dubois, Gena Rowlands, o monólogo "A Voz Humana", de Jean Cocteau. É um texto inclusive mais fluido, saboroso.

Em seguida, o autor retorna à sua verve anticlerical em um conto mediano sobre vampirismo, "A Cerimônia do Espelho", mas o subtexto religioso retorna mais forte em um dos últimos textos do livro, "A Redenção". Ali, fala sobre um Jesus que desce à Terra e se torna cada vez menos divino, enquanto o bandido Barrabás santifica-se exponencialmente. Há um subtexto impreciso e até homoerótico nessa troca entre duas criaturas tão diversas, resultando em um conto blasfemo, mas sobretudo impactante.

O escritor mostra sua versatilidade estilística em "Joana, a Bela Demente", conto que poderia fazer parte de "As Mil e Uma Noites", não fosse pela especificidade tão espanhola do caso relatado. Tal como uma Sherazade cuja missão é hipnotizar o leitor, Almodóvar recorre a uma história tão repleta de novidades e reviravoltas que fascinam quem o lê do início ao fim. E sem necessidade alguma de complemento visual.

O que é uma surpresa, já que Almodóvar sempre foi um cineasta da matéria, muito mais do que da abstração; seus filmes só fazem sentido pela carnalidade, pelo aspecto palpável que suas ideias possuem quando levadas para a tela com o arremate audiovisual do mestre que ele é. As intenções mais filosóficas do cineasta sempre deram a impressão de que não teriam grande fôlego ou ressonância se permanecessem apenas em forma escrita.

Mas o livro traz contos que contrariam essa noção, e "A Vida e Morte de Miguel" é o melhor exemplo. É uma incursão na literatura fantástica escrita nos anos 1960, com parentesco temático com "O Curioso Caso de Benjamin Button", o filme de David Fincher, de 2008. Acompanhamos de trás para frente a história de um rapaz morto aos 25 anos.

Quanto mais o protagonista envelhece —ou melhor, rejuvenesce—, mais aflito fica com o aumento da própria limitação intelectual e da dependência dos outros. Em sua metáfora às avessas sobre o quanto a vida nos escapa ao controle com o passar dos anos, melancolicamente Almodóvar nos mostra, ali, o quanto a decrepitude se assemelha à infância.

Mas é outro o candidato a ganhar a preferência dos leitores —"Confissões de uma Sex Symbol". Trata-se de um conto com a personagem já apresentada ao público brasileiro, nas crônicas de "Patty Diphusa e Fogo nas Entranhas", lançado pela editora Tusquets.

Patty foi criada na década de 1980, em plena loucura da Movida madrilenha, com histórias publicadas em forma de crônicas. Suas narrativas desbocadas, hilariantemente absurdas e politicamente incorretas têm uma legião de fãs quase tão grande quanto a dos cinéfilos que idolatram a primeira fase do cineasta.

Aqui, Patty, atriz de fotonovelas pornográficas cuja autoconfiança é tão infalível quando sua capacidade de fazer o leitor gargalhar, se mete em uma aventura de contornos internacionais, em que consome fartas doses de heroína, é perseguida por sicários italianos e se vê em confronto físico com uma pantera. Mas o ápice da maluquice está em outro trecho. Quando seu amante pede a ela —justo ela— que dê aulas particulares de geografia a seus filhos, Patty diz que não tem conhecimento suficiente sobre o tema e pede que ele lhe pague uma viagem pelo mundo para ganhar mais embasamento. E não é que ela consegue?

Mas esse texto delirante é um contraponto a outros em que Almodóvar se mostra com um temperamento mais parecido com o de seus filmes mais recentes, sobretudo "Dor e Glória", de 2019, em que apresenta uma percepção sobre o mundo mais soturna. Em "Memórias de um Dia Vazio", o escritor mesmo explica. "Se eu tinha certeza de algo quando era jovem era de que jamais ficaria entediado. Agora fico. E isso é uma espécie de derrota."

"Natal Amargo" e "Um Romance Ruim" são povoados por um espírito de tristeza semelhante, assim como "Adeus, Vulcão", uma sentida homenagem à cantora Chavela Vargas, uma de suas grandes divas.

Mas é a outra mulher que Almodóvar reserva o ponto alto do livro. O conto que batiza a obra ele escreveu pouco após a morte de Francisca, sua mãe. Que foi a grande homenageada em toda a sua obra.

Na introdução do livro, Almodóvar diz que são as melhores cinco páginas que ele já escreveu —e ele tem completa razão. E se ele acha que sua magnífica obra no cinema não foi o suficiente para homenagear sua mãe, ele que não tenha dúvidas —no conto, o faz de maneira comovente e inquestionável.

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