A música que abre o sétimo disco autoral de Ana Cañas dá nome ao álbum, "Vida Real". A melodia com versos curtos e assertivos pode lembrar uma canção de Belchior. A influência é compreensível, uma vez que este é seu primeiro trabalho depois de uma longa imersão na obra do cantor cearense.
Ana Cañas começou na pandemia seu projeto de cantar Belchior. Foram mais de 180 shows levados a cerca de 100 cidades. Seria impossível que os 14 meses que dedicou à gravação do novo álbum não fossem impregnados por um dos cancioneiros mais fortes da MPB. "Eu considero essa comparação um elogio. Porque eu não cantei Belchior, eu vivi Belchior."
Ela recorda que tudo começou de forma despretensiosa. Para uma live durante a pandemia, ficou na dúvida entre os repertórios de Belchior, Cazuza e Rita Lee. A grande surpresa veio já no dia transmissão pela internet. No final da live, meio milhão de pessoas estavam assistindo.
"Meu celular tinha muitas mensagens. A primeira delas era do Ney Matogrosso. Ele escreveu, ‘Que coisa magnífica você está fazendo hoje. Siga cantando Belchior.’ Depois que eu li aquilo, não teve volta!" A turnê cresceu sem parar. "Muitos desses shows a gente construiu, a gente cavou. Eu aluguei teatro, comprei passagens da banda e rezei para vender ingresso. Foi na raça, sem patrocínio, tenho muito orgulho disso."
No novo álbum, o espectro de Belchior se revela de forma ampla nas letras. Desde sempre compositora de versos muito pessoais, desta vez é possível ouvir uma Ana Cañas mais cronista, observadora. Personagens passeiam pelas letras, muitas autobiográficas, em registros que abraçam várias fases de sua vida.
No primeiro show da turnê, ela abriu um espaço antes de "Fotografia 3x4", a canção de Belchior que mais a emociona, e falou de sua relação com a mãe, que estava na plateia. "Briguei com a minha mãe, saí de casa, fui morar num pensionato com várias profissionais do sexo. Elas dividiam prato de comida comigo, isso acontece quando eu tinha 18, 19 anos. E para sobreviver eu distribuía panfleto no semáforo."
Verbalizando isso pela primeira vez, ela viu a plateia explodir, "gente chorando e tudo". A iluminadora do show, Carolina Autran, disse então a Ana que nunca deixasse de contar essa história nos shows. "E assim foi por mais de 180 vezes. A dor nos une. E pensei, se vou fazer um disco chamado ‘Vida Real’, eu tenho que fazer a minha ‘Fotografia 3x4’." E nasceu a canção que abre o disco, que remete a essa passagem no final da adolescência.
"Do Lado de Lá", que fecha o álbum, é uma canção emocionante escrita para o irmão, morto em 2013. Entre essas faixas de grande carga pessoal, ela mostra um repertório que fala muito de amor, paixão e tesão. São bons exemplos as faixas em que convida amigos para cantar.
"Derreti" é uma canção safada, insinuante, ao lado de seu assumido mentor, Ney Matogrosso. O dueto é o grande momento vocal do disco, e nunca é fácil encontrar quem se aventure a cantar com Ney e não fique intimidado por seu vozeirão.
As outras duas colaborações trazem cantoras famosas de estilos diferentes. Em "Amiga, Se Liga", com Roberta Miranda, o resultado é uma gravação muito simpática. Ana Cañas visita o forró sertanejo numa letra na qual as amigas exercem uma solidariedade feminina, o que é relevante num gênero no qual convivem letras machistas e canções de empoderamento feminino.
Mas o grande potencial para um hit está em "Brigadeiro e Café", não apenas por ser um dueto vigoroso com Ivete Sangalo. É uma canção que lista de modo divertido coisas cotidianas que compõem uma relação, como comer um "dogão" à luz de vela, ir ao futebol ou até o ato de receber, ou fazer, uma massagem no pé.
Falar de amor é a base do disco. Desde uma canção forte, direta e derramada como "Quero um Love" ou a confessional "Toda Mulher É Além", até uma de forma lírica mais rebuscada, que é "O Que Eu Só Vejo em Você", de Nando Reis, única das 11 faixas que não foi escrita pela cantora.
Ana Cañas já prepara o show do álbum, com sua banda. Sim, algumas canções de Belchior serão contempladas. E já tem planos de, a seguir, fazer um show intimista, sozinha no palco, contando histórias. Certamente tem grande quantidade delas depois da longa excursão pelo Brasil.