A cuidadora e diarista Rosemary Pereira, 41, leva duas horas todos os dias para sair de casa, na cidade de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte, até chegar no trabalho, no bairro Luxemburgo, na região central da capital mineira.
Na volta, a situação é semelhante. Nas situações em que ela precisa deixar o trabalho às 17h, e não às 16h30, cerca de 30 minutos são adicionados à duração da viagem por causa do fluxo do trânsito. O trajeto, feito de ônibus, dura cerca de metade do tempo ao ser feito de carro.
"O principal problema é a demora para o ônibus passar, às vezes atrasa 20 minutos do horário prometido. Aí depois é mais um tempo esperando na estação [do transporte metropolitano], porque não passa ônibus suficiente para quantidade de gente que tem esperando", afirma Pereira.
A reclamação é compartilhada pela diarista Juraci dos Reis, 50, que tem que sair de casa por volta das 7h do bairro Santa Lúcia, na região sul de Belo Horizonte, para chegar às 9h no bairro Sagrada Família, na parte leste da cidade.
"O ônibus quase nunca passa no horário. Uma vez era para eu estar no trabalho às 9h e fui chegar só às 10h30, porque simplesmente não passou ônibus. Eu chego a passar mal no ponto de tão estressada que fico" diz Reis.
A reclamação dos usuários sobre o transporte público da capital mineira não é nova, e o tema deve estar entre os principais assuntos das eleições deste ano, que terá o prefeito Fuad Noman (PSD) tentando a reeleição.
Pesquisa Datafolha do início de julho indicou que transporte público foi apontado por 17% dos eleitores como o principal problema de Belo Horizonte empatado tecnicamente com saúde, que foi citado por 21% dos entrevistados. O levantamento ouviu 616 pessoas e teve margem de erro de quatro pontos percentuais.
Caberá ao próximo prefeito da capital mineira renovar o contrato com as concessionárias do serviço de transporte público na cidade, que foi celebrado em 2008 com duração de 20 anos.
O acordo esteve no alvo da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) criada no ano passado pela Câmara Municipal para apurar a atuação de duas empresas de transporte público do município.
As investigações se tornaram o grande assunto político da capital mineira em 2023. Também foram um marco do desgaste entre o prefeito e o presidente da Câmara, Gabriel Azevedo (MDB), que enfrentou dois processos de cassação apoiados pela base do prefeito –ambos foram arquivados.
O relatório final da CPI foi aprovado por unanimidade pelos vereadores em fevereiro. O documento, encaminhado à prefeitura e ao Ministério Público de Minas, pediu o indiciamento de empresários e a rescisão do contrato com as duas empresas –o que não foi feito.
"A CPI mostrou quais erros não podem ser repetidos na próxima elaboração de contrato e deu motivos reais para o prefeito cancelar o contrato. Ele não quis. Ele criou um grupo de trabalho que estava estudando uma nova licitação e nunca foi para frente. Faltou pulso", diz o vereador, que hoje também é pré-candidato à prefeitura.
Procurada para comentar a declaração, a gestão municipal não respondeu.
Em maio do ano passado, um mês antes de a Câmara aprovar a abertura da CPI, um acordo feito pelo Executivo e Legislativo do município levou à redução das passagens do transporte municipal de volta para R$ 4,50. Em abril, a tarifa havia subido 33%, para R$ 6.
Um novo subsídio, de R$ 512 milhões, foi aprovado em conjunto pelo município e pelos vereadores. Em troca, as empresas tiveram que praticar tarifa zero nas linhas de vilas e favelas e passe livre para estudantes.
Também começaram a valer programas de vale-transporte para pacientes oncológicos e acompanhantes e auxílio para mulheres em situação de violência doméstica.
Outra obrigação imposta às empresas foi a compra de 420 novos ônibus –hoje, segundo a prefeitura, são 757 novos veículos.
No ano passado, Belo Horizonte ainda alterou o modelo de remuneração das empresas concessionárias. Ele deixou de ser baseado no número de passageiros transportados e passou a considerar a quilometragem rodada, desde que as empresas cumpram com as regras de fiscalização da prefeitura.
O município afirma que as mudanças contribuíram com a redução da idade média dos veículos e com o aumento de frotas e linhas. Para os usuários do transporte ouvidos pela Folha, porém, a situação pouco se alterou nos últimos anos.
"São muitos ônibus que quebram com a gente dentro, ou com campainha que não funciona, banco quebrado. Até pneu careca eu já vi. A situação está piorando a cada dia", diz Juraci Reis. Em 2024, mesmo com um subsídio previsto de R$ 392 milhões, a passagem subiu para R$ 5,25.
A prefeitura afirmou que a responsabilidade pela manutenção é das concessionárias e que incentivou a fiscalização.
"Conforme o problema detectado, a autorização de tráfego é recolhida e o ônibus só pode voltar a circular depois de solucionado o problema", disse o município, em nota.
O SetraBH, sindicato que representa as empresas, afirma que o sistema municipal conta com mais de 2.600 ônibus em circulação, que realizam quase 24 mil viagens por dia, e que é inevitável que esses veículos enfrentem acidentes ou apresentem problemas.
"O índice de cumprimento das empresas supera 98% das viagens diárias", disse o sindicato, em nota.
O prefeito, na pré-campanha, promete intensificar ações de "tolerância zero", de fiscalização permanente nos ônibus, que pune as empresas por irregularidades. Também diz que já estão assegurados R$ 317 milhões do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), do governo federal, para a compra de cem ônibus elétricos.
A formulação do novo contrato para o transporte municipal, que será de responsabilidade do próximo prefeito, enfrentará um desafio que atinge não apenas a capital mineira, mas outras grandes cidades do país: a queda de usuários.
Dados da BH Trans mostram que o fluxo de passageiros nos ônibus caiu 31,7% nos cinco primeiros meses de 2024 na comparação com o mesmo período de 2019, último ano pré-pandemia.
"A situação é trágica, a cidade continua perdendo passageiros e aumentando subsídio", afirma Roberto Andrés, professor do curso de arquitetura e urbanismo da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Ele afirma que o contexto atual cria uma espécie de ciclo vicioso no país, alimentado pela perda de usuários, que gera aumento da tarifa ou a piora do serviço.
"Então, há um incentivo para a migração para o automóvel, para a moto. E esse incentivo faz perder o número de usuários no transporte público, realimentando o ciclo. Quando a gente olha para o pós-pandemia, os únicos municípios que não perderam usuários foram aqueles que adotaram tarifa zero", diz Andrés.
Ele é um dos autores de uma proposta de passagem livre no município, que custaria de R$ 1,5 bilhão a R$ 2 bilhões (cerca de 10% do total do Orçamento para 2024). De acordo com o desenho, o custo seria sustentado a partir de um vale-transporte de cerca de R$ 170 mensais por trabalhador que seria pago pelos empregadores.
Francisco Christovam, diretor-executivo da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) diz que o setor já recuperou mais de 80% da demanda que existia antes da pandemia.
Ele lembra também que o número de sistemas que adotaram subsídios passou de 20 antes da emergência sanitária para os atuais 92, conforme um estudo da entidade. Em 2023, o valor total de incentivos ao transporte coletivo por ônibus no país foi de cerca de R$ 12 bilhões.
"O desafio da empresas agora é atrair uma nova demanda para o transporte público", diz Christovam.
"E isso só acontece se a gente oferece um serviço na quantidade e na qualidade desejadas pela população. A iniciativa privada tem a sua responsabilidade, as suas obrigações, e o poder público também. Portanto, deverá haver, necessariamente, uma revisão dos contratos", afirma o executivo.
O QUE DIZEM PRÉ-CANDIDATOS SOBRE O TRANSPORTE PÚBLICO:
Mauro Tramonte (Republicanos), deputado estadual: Cobrar de verdade que o contrato com as empresas de ônibus seja cumprido. O transporte público de BH é uma vergonha, tem hoje a quarta passagem mais cara do Brasil. E a prefeitura ainda paga mais de R$ 500 milhões para as empresas de ônibus. Não tem problema pagar subsídio para o transporte coletivo. O problema é o não cumprimento do contrato. Hoje as empresas deixam de fazer aproximadamente 500 viagens por dia que estão no contrato e não são feitas.
João Leite (PSDB), ex-deputado: Reorganizar o transporte público e investir em alternativas, como trens metropolitanos. No passado, tínhamos trens elétricos para Contagem e Betim. Todas as grandes capitais possuem trem de passageiros, só BH não. Temos um metrô de superfície com 27 km que não atende. Suas últimas extensões foram feitas por FHC. Depois, nunca mais. Defendo a integração do trem com os ônibus. As linhas existentes são utilizadas para carga, mas a Lei das Concessões permite passageiros.
Duda Salabert (PDT), deputada federal: O primeiro passo é revisar os contratos de ônibus, priorizando conforto e pontualidade nas viagens, com tolerância zero para empresas e respeito ao cidadão. Também queremos mais faixas exclusivas e sistemas de informação, em tempo real, em todos os pontos. BH terá passe livre aos domingos e ampliaremos o serviço noturno para atender trabalhadores de bares e restaurantes. Mais do que isso, defenderemos a criação do Sistema Único de Mobilidade em BH, que será modelo para o Brasil.