Adão Iturrusgarai: Rê Bordosa de Angeli, 40 anos depois, segue viva nos corações e fígados

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Rê Bordosa explodiu minha cabeça. Foi algo tão marcante que me lembro como se fosse ontem o dia em que conheci a Porraloca.

O ano era 1985. Eu tinha 20 anos e morava em Porto Alegre. Parado no ponto, esperando o ônibus, avistei na banca de revistas o primeiro gibi da personagem. Era aquele livrinho de formato retangular horizontal, com duas tiras por página, chancelado pela paulistana Circo Editorial, do heroico Toninho Mendes.

Comprei sem pensar e subi no ônibus. Ao folhear, cada tira me atingia com a força de um soco no estômago, além de me arrancar gostosas gargalhadas. Faminto, devorei o gibi até descer zonzo no meu ponto. Chegando em casa, reli infinitas vezes, decorando todos os balões e piadas.

Depois daquele primeiro encontro com ela, minha vida nunca mais seria a mesma. Foi um caminho sem volta. E tenho certeza de que o impacto foi o mesmo em muita gente.

A personagem tinha uma pegada moderna, na contramão de tudo que estava sendo feito naquele momento no quadrinho brasileiro, que, retratando generais e políticos, tinha um discurso engajado. Angeli ditou a hora de aposentar o disco do Geraldo Vandré e botar para rodar Rolling Stones. A abertura política, que engatinhava, pedia rebeldia, sexo, drogas e muito rock’n’roll.

Na época eu só pensava em quadrinhos e, por causa da Rê, corri atrás de todas as fontes onde Angeli havia bebido para se inspirar: o underground americano dos anos 1960, capitaneado pelo gênio Robert Crumb.

Quando mudei para Paris em 1990, levei comigo o gibi da Rê Bordosa comprado em Porto Alegre e mostrei ao Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers. Ele ficou encantado com os desenhos e pediu que eu traduzisse todas as tiras, uma por uma.

Shelton não imaginava que havia uma revolução da nona arte acontecendo no Brasil, principalmente em São Paulo. Assombrado com a personagem, falou: "Sempre soube que os brasileiros eram muito criativos, mas isso aqui passou da conta". "Rê Bordosa teria feito o maior sucesso na Zap Comix", disse, se referindo ao fanzine editado no final dos anos 1960 por Crumb, onde colaboraram com ele Clay Wilson, Rick Griffin, Paul Mavrides, entre outros malucos.

Além de exalarem odor de cerveja choca e fumaça de cigarro, as tiras da Rê Bordosa eram a conjunção perfeita entre traço e humor, finalizadas com a maestria que só um gênio pode alcançar.

Os cenários dos desenhos normalmente eram um balcão de bar com ela sendo servida pelo garçom Juvenal, um divã ou uma cama. A imagem mais marcante de todas foi a Porraloca de ressaca, deitada na banheira com os seios redondos emergindo da água. Na borda e em volta se viam calcinhas, maços de cigarro, garrafas de uísque e um telefone de discar para pedir pizza. Se não tivesse pizza, ela se contentava com o entregador.

Em 1991, voltei de Paris para Porto Alegre e, em 1992, seria lançado o novo livro da Rê Bordosa. Fui contratado para ser motorista da dupla Angeli e Toninho Mendes.

O evento, no bar Porto de Elis, foi um sucesso. Casa cheia e, "comme il faut", na fila de autógrafos várias groupies fantasiadas de Rê Bordosa. Elas chegavam e se anunciavam: "Tenho certeza de que a Rê Bordosa foi inspirada em mim".

O assédio foi monstruoso e, quando terminou o lançamento, tive que escoltar Angeli e seu editor, saindo à francesa em busca de um lugar tranquilo para jantar.

Apesar do sucesso estrondoso, a personagem durou pouco tempo. Criada em 1984, três anos depois foi morta pelo seu criador. Angeli temia que sua carreira ficasse muito marcada pela Porraloca.

Como quadrinista, entendo o autor. É difícil desenhar uma personagem por muito tempo, principalmente quando o sucesso é grande. É como se adquirisse vida própria e independente da vontade de quem a desenha.

Guardo aquele primeiro gibi como um tesouro, a sete chaves. Ainda hoje me pego folheando suas páginas e rindo das tiras.

Mesmo morta, Rê Bordosa continua viva no coração e fígado de seus leitores.

Agora, ela é uma senhora que está fazendo 40 anos, mas não perdeu nem um pouco de sua verve. O negócio é comemorar. "Juvenal, manda um uísque duplo e sem gelo em homenagem a Rê."

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