Parecia o caminho natural, quando Luiz Guilherme Guerreiro, 41, começou a trabalhar como atendente da 2001 Vídeo. Ter de levar um filme por dia para casa era uma desculpa para que ele aprofundasse seu interesse pelo cinema, enquanto vivenciava a transição do VHS para o DVD.
A 2001 era conhecida em São Paulo como um espaço em que os clientes se reuniam para discutir lançamentos e filmes clássicos, mas não resistiu ao baque do setor de locação de filmes, atingido pela expansão da pirataria e, mais tarde, pela profusão de serviços de streaming.
"Nossos clientes, verdadeiros amantes de cinema, nos ajudaram a escrever uma história de sucesso, e por isso seremos eternamente gratos", dizia o comunicado da empresa, ao anunciar o fechamento de suas lojas físicas em 2015, após 33 anos.
A experiência na locadora, onde interagia com anônimos e famosos, reforçou em Guerreiro a certeza de que seguiria carreira no audiovisual. Hoje documentarista, ele relembra com carinho de seu primeiro emprego.
Esse texto faz parte de uma série em que trabalhadores rememoram profissões ou negócios que deixaram de existir.
Leia abaixo o relato de Guerreiro.
Ao passar em frente à loja mais famosa de todas, a da avenida Paulista, em São Paulo, fiquei sabendo que estavam contratando e tinha acabado de me formar na escola.
Foi uma coincidência, entrei na locadora justamente em 2001, tinha 18 anos e foi meu primeiro trabalho formal. Fiquei lá por cerca de seis meses, rodei as quatro lojas como temporário e depois fui efetivado na unidade Cidade Jardim.
Fazia cursinho para entrar na faculdade de cinema. Já tinha essa vontade, e logo descobri que era uma coisa comum entre os funcionários da locadora.
Já entrei com algum conhecimento de cinema, e essa era uma exigência deles. Era comum a gente abordar os clientes para dar sugestões. Um dia, teve um cara que me pediu, só para testar o meu conhecimento, "O Encouraçado Potemkin".
Peguei um período de transição do VHS para o DVD, que naquela época era uma coisa cara e só as classes A e B tinham.
A 2001 era um lugar de encontro das pessoas, elas iam para conversar e passar o tempo. A loja da Sumaré era a melhor, dava para ficar horas lá dentro, era quase como uma biblioteca.
Antes de trabalhar lá, já era consumidor de videolocadoras, loquei muito filme e frequentava muito cinema também.
Dava um certo status "cult" locar na 2001. Muitos famosos apareciam, o apresentador Serginho Groisman, a atriz Suzy Rêgo. O cantor Emílio Santiago foi gravar lá, mas não tinha ficha na locadora. Ele gravou e no fim entregou todos os filmes na nossa mão, não levou nada.
Sinto falta do filme que ia passando de boca em boca, adorava indicar "Corra, Lola, Corra". Dizia que o cliente tinha de assistir aquele filme.
Essa emoção de ver o que ia chegar, do lançamento, de quando conseguia fazer um barulho em torno dos clientes.
Cheguei a ter alguma coleção de VHS e DVD, mas as coisas vão se perdendo nas mudanças e as coleções foram sendo desfeitas.
Lembro das cenas na hora de cobrar os atrasados. Teve cliente fazendo cheque de R$ 1.000, por ter ficado dois meses na praia e esquecido de devolver o filme. A multa às vezes era maior do que o meu salário.
"2001, o cinema está aqui", tinha de falar isso toda hora quando alguém ligava, essa frase nunca saiu da minha cabeça.
É uma experiência da qual lembro com carinho, da alegria quando caiu o meu primeiro salário, todos os amigos que iam na loja. Olho para trás e sinto orgulho de ser alguém que sempre precisou trabalhar e foi esforçado. Até o Quentin Tarantino trabalhou numa locadora.
Eu já morava no Rio de Janeiro quando as lojas da 2001 fecharam e me deu nostalgia pela época em que trabalhei lá, mais do que por ver acabando o ciclo das locadoras. A gente acaba naturalizando ter Netflix no sofá, se acostuma.
Folha Mercado
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Na faculdade, comecei a trilhar esse caminho dos documentários, era uma oportunidade de trabalhar mais sozinho, enquanto filmar ficção exige um pouco mais de equipe e estrutura.
Ganhei um prêmio do festival É tudo verdade, em 2009, com o curta "Ser Tão", sobre quando o Teatro Oficina foi se apresentar em Canudos.
Hoje faço documentários de dança e registro a cena, festivais de dança contemporânea e até funk. O último documentário que fiz, "O Corte da Dancinha", é sobre barbeiros que dançam ou bailarinos que cortam cabelo.
O mercado voltou a uma certa normalidade com o atual governo federal. Para os meus filmes nunca tive dinheiro público, são sempre oportunidades que surgem. O dos barbeiros foi um dinheiro que veio da Europa, mas o meu ganha-pão acaba sendo fazer registros para pessoas que ganharam editais.
A desistência está na nossa cara todo dia, o que a gente faz é tentar deixá-la para trás. Fazer documentários é isso, são tantos temas para tantos documentaristas, uma profusão de pessoas para abordar com verdade e a questão de fala.