Todo mundo que importa no universo da arte estava naquela fila. Diretores de museus de dentro e de fora do Brasil, galeristas mais ou menos experientes, artistas valorizados ou nem tanto, curadores atrás de contatos profissionais e colecionadores ávidos por serem vistos onde era obrigatório dar as caras na noite da última terça-feira —na abertura da exposição que marca os 50 anos da galeria Luisa Strina.
O burburinho era para dar os parabéns à marchande mais influente do Brasil e pedir seu autógrafo no livro, também lançado naquele dia, que rememora a sua trajetória em artigos e fotografias. Strina alavancou carreiras de artistas antes desconhecidos mas hoje incontornáveis, como Cildo Meireles, Leonilson e Fernanda Gomes, ajudou a criar o mercado de arte no país em seu formato atual e fomentou o colecionismo.
Uma brincadeira corrente no meio é a de que se vai até a galeria de Strina, em São Paulo, pedir sua bênção. Mas ela não se sente confortável com o excesso de reverência. "Essa história de diva, eu não fiz nada de mais. Eu trabalhei como os outros trabalharam. Não foi uma coisa heroica, foi muito devagar. As pessoas vêm beijar a mão, mas é patético. Me assusta porque é uma invasão em cima da gente", afirma.
Strina recebeu os repórteres na biblioteca de seu apartamento, em meio à sua coleção de livros e paredes cheias de obras de arte, sentada próxima à um árvore de café que seu pai deu a ela há 40 anos. Entre um copo de água e outro, ela parecia tranquila —e um pouco cansada— enquanto conversava sobre sua longeva carreira, uma exceção num mercado no qual galerias abrem e fecham em poucos anos.
Para se manter na ativa por tantas décadas, feito que divide com a galeria Raquel Arnaud e com a Dan, surgidas na mesma época da sua, Strina afirma que "o segredo é bater duro, é trabalhar, não importa as ocasiões". Ela conta que seu pior período foi durante o confisco da poupança no governo de Fernando Collor de Mello, em 1990, quando morria de medo que ninguém comprasse "o monte de pedaço de pano pendurado" que tinha nas paredes.
Diante do desespero, lembra ter vendido uma gravura de Alfredo Volpi pelo equivalente a R$ 1.000, "porque achei que nunca mais fosse vender nada". Com exceção desse período, traumático para todo o país, ela afirma sempre ter vendido com regularidade e não ter tido crise em seu negócio, dedicado a representar artistas conceituais, com trabalhos de compreensão mais difícil e estética distante de uma simples pintura de paisagem, por exemplo, gênero de muita procura no mercado.
Na exposição do aniversário de 50 anos, composta por um recorte da coleção de Strina, vemos uma banquinha com ratos e baratas mortas de Marepe e pranchas de skate quebradas ao redor de um aparato que dá ao conjunto o formato de um ventilador, uma obra de Alexandre da Cunha. Mas há também a tradicional linguagem da pintura, como numa tela abstrata de Luísa Matsushita. Todos eles são artistas representados pela sua galeria.
"Eu trabalho com a excelência. A excelência você não encontra se a pessoa é negra, gay, branca, preta, trans. Você encontra na essência do trabalho. Você só tem um Pelé —você não tem um Pelé branco", ela afirma, ao ser questionada se sente impelida a ter um elenco de artistas diversos, um mandamento que as galerias têm seguido à risca, independente da qualidade da obra. "Vou mostrar um índio ano que vem. Porque ele é bom, não porque é índio."
Lembramos três nomes de representação recente de sua galeria, Luísa Matsushita, Bruno Baptistelli e Panmela Castro, e perguntamos quais os critérios para ela acrescentar esses artistas ao seu elenco. "É uma coisa que me diz que [eles] têm uma sensibilidade maior. Porque tem milhões de artistas parecidos com a Panmela, mas nenhum tem a qualidade dela e dos outros dois também. É uma peneira do que está sendo feito."
Strina, de 81 anos, nasceu em São Paulo numa família de ascendência italiana —seus avós migraram para o Brasil na virada do século 19 para o 20. No livro, ela conta ao jornalista britânico Oliver Basciano, radicado em São Paulo, ter sido introduzida à arte pelos suplementos de uma revista dedicados a mestres como Michelangelo e Leonardo. Depois, chegou a estudar pintura, mas logo viu que não queria ser artista plástica, embora tivesse certeza de seu desejo de ficar perto de arte e de artistas.
À época, tinha um grupo de amigos artistas —dentre os quais Luiz Paulo Baravelli, Carlos Fajardo, José Resende e Frederico Nasser— e trabalhava na organização de exposições para galerias e instituições. Nesse contexto, começou a vender obras de seus conhecidos, até que ocupou o imóvel onde Baravelli teve seu ateliê, na esquina da rua Oscar Freire com a Padre João Manuel, nos Jardins. Ali, em 17 de dezembro de 1974, abriu a galeria que leva seu nome, onde expunha o trabalho de amigos.
Nos primeiros anos, ela lembra, o mercado de arte era minúsculo e os vernissages viravam festas onde as pessoas ficavam até perto da meia-noite conversando sobre a exposição. Mas o cenário mudou a partir da década de 1990 —com o crescimento e a profissionalização do mercado, a socialização tomou a dianteira. "Hoje as pessoas nem olham o que tem na parede [nas aberturas]", ela diz, aos risos. "Virou moda gostar de arte."
Como a primeira galerista brasileira a expor na Art Basel, a maior feira do mundo, na Suíça, em 1992, Strina é creditada como uma embaixadora da arte nacional no exterior. Ela também trouxe para o Brasil mostras de artistas internacionais —a exemplo de uma do espanhol Antoni Muntadas, com quem trabalha desde os primórdios da galeria— numa época em que ter acesso ao trabalho de estrangeiros era bem menos comum que hoje.
Acostumada a importar obras de arte, ela defende uma diminuição na carga tributária para o setor, dado que há um imposto de mais de 40% sobre trabalhos vindos do exterior. Em vários países da Europa esse valor é de 5%, enquanto nos Estados Unidos a importação não paga tarifas. "Se [o Brasil] tivesse um imposto de 5%, 10%, todo mundo pagava. Do jeito que está, todo mundo tem apartamento em Nova York, compra e deixa as coisas lá fora. O Brasil dá um tiro no pé."
Ao ser questionada sobre o futuro, Strina diz, em tom bem humorado, que é preciso começar a pensar nos 60 anos de sua galeria. Ela conta ter ido ao médico há pouco e que, exceto pela falta de vitamina D, que repõe com remédios, sua saúde está impecável, motivo pelo qual não quer parar de trabalhar, embora esteja ficando cansada do tanto de fofoca do meio da arte, que em geral a trata com muita reverência.
Sendo assim, não é de se estranhar que ela própria tenha virado tema de obras de arte, que de uma forma ou de outra tratam de desaparição. Há dois retratos de Strina em exibição na galeria —uma pintura de Wesley Duke Lee, com quem foi casada, e outra da dupla britânica Jake and Dinos Chapman, a quem pagou para ser desenhada. "Nos retratos que eu tenho meu, eu não tenho cabeça", diz, emendando uma gargalhada.
Strina lembra também uma foto de Mauro Restiffe em que aparece com a cabeça para baixo, "como se estivesse morta", e conta que ele fez o retrato sem que ela se desse conta. Diante do pensamento da finitude, ela afirma que gostaria que sua galeria seguisse em atividade quando não estiver mais aqui e que desenhou um plano de sucessão para isso. "Uma pedra cai na tua cabeça e você morre", afirma. "Qualquer um de nós aqui. Sai, tropeça e morre."