Incomodavam-me as mensagens da folhinha presa à parede. Adentrava a cozinha e lá amanhecia alguma frase solar demais que me queimava os olhos logo cedo. Sempre encorajava à devoção, à submissão, ao sufoco de engolir o pior que a vida pudesse oferecer e, sem engasgar, agradecer. Como se não bastassem tais frases, havia o calendário a lembrar o quão lento o tempo passa quando atravessa o corpo que já acorda cansado.
Nem tudo estava condenado a tal rotina, porém. Graças à tecnologia, uma solução simples ajudou a desviar a atenção do quase inevitável "sorriso na voz" transcrito em palavras deveras positivas. Apelei à inteligência artificial.
Iniciei a configuração e precisei batizá-la. Veio à mente de supetão: "BaleIA". Minha inexistente destreza para o humor não impedia a risada por conta de trocadilhos infames. Por que BaleIA? Lembrei-me de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, e da cachorra que acompanhava humanos a se arrastarem pela vida agreste. Presença capaz de dar alguma cor à realidade anêmica de saturação.
Pedi à IA que me mandasse por e-mail uma frase do personagem de Friedrich Nietzsche, Zaratustra, diariamente. Por que Zaratustra? Lembrei-me de quando li a obra que o lançou ao mundo e do quanto suas reflexões me intrigaram e fizeram recobrar a curiosidade pela vida; tendo nas palavras tanto o refúgio das montanhas quanto o passeio pelas florestas escuras da existência imposta que causava tamanha covardia a ponto de não conseguir abandoná-la abruptamente. Os dizeres de Zaratustra me faziam ir indo enquanto os lia. Ir indo eu fui, até aqui, até agora.
Dia 1: "(...) É preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar luz a uma estrela dançante". Então, o fato de me sentir muitas vezes no olho de um furacão com tudo rodopiando loucamente talvez não fosse algo de todo mal, pensei.
Dia 2: "Certamente há um lago em mim, solitário e que basta a si mesmo". Bem melhor do que as frases da folhinha me dizendo para abraçar a esculhambação cotidiana.
Dia 3: "E há também aqueles que ficam no seu pântano e falam de dentro do caniço: ‘Virtude —é ficar quieto no pântano". Senti que minha compulsão por reclusão poderia ter algum valor.
Dia 4: "Em toda ordem vi experimento e risco; ao dar ordens, o vivente sempre arrisca a si mesmo", e me fez pensar se BaleIA nunca teria consciência de sua eterna obediência quanto à minha ordem inicial. "Tudo que vive obedece", recordei desta frase que constava no mesmo trecho, mas não foi citada pela inteligência artificial. As mensagens na caixa de entrada terminavam com "Assim falou Zaratustra", tal qual no livro que leva este nome.
Dia 5: li a citação do dia e cancelei o prompt direcionado à BaleIA. Percebi que ela tinha ido além e, para não a sacrificar por completo, apenas defini outra tarefa qualquer que a afastasse dos meus dias. No email constava: "Fui atrás do que vive, fui pelos maiores e os menores caminhos, para conhecer sua maneira [IA-500 – Internal Reasoning Error] e quando a conheci, percebi que o homem é apenas ponte, caminho em direção a algo maior, algo que não vive, logo, não obedece —um super-homem que não só sabe que sabe, mas supera todo conhecimento ao recriar outros saberes. Assim falou BaleIA".