O SAF busca, justamente, mudar quais produtos podem produzir esse combustível, que pode ser derivado de etanol (álcool), óleo (inclusive o usado) e, até mesmo, resíduos de madeira. Cada um desses materiais passa por um processamento, assim como o petróleo, para se tornar um combustível compatível e seguro com os motores das aeronaves.
O etanol brasileiro é que se diferencia, justamente pelo país ser o maior produtor mundial desse produto, e já ter experiência de décadas na fabricação de biocombustíveis.
EUA sentem ameaça do Brasil
Em 2024, Tom Buis, presidente-executivo da ACA (American Carbon Alliance, ou, Aliança Americana do Carbono), se manifestou sobre o assunto após cargas de etanol que partiram do Brasil chegarem ao país norte-americano para serem transformadas em SAF.
"Se quisermos ver a agricultura americana sobreviver e prosperar, precisamos garantir que o etanol de milho seja parte da solução quando se trata de Combustível de Aviação Sustentável. Se não agirmos, o Brasil continuará a preencher o vazio", disse.
A questão é polêmica, pois o Brasil é o segundo maior produtor de etanol do mundo, ficando apenas atrás dos próprios Estados Unidos. Ocorre que, no país norte-americano, o álcool é feito a partir de milho, que tem rendimento menor e tem uma pegada de carbono maior que o etanol feito a partir da cana-de-açúcar.
Com isso, o produto brasileiro tem mais potencial de redução nas emissões de poluentes do que outros concorrentes diretos, com o combustível feito a partir do álcool derivado do milho. E essa é uma forte preocupação do setor.
Desafios regulatórios limitam avanço

A exportação de etanol para a produção de SAF nos Estados Unidos pode favorecer o Brasil, mas ainda existem desafios regulatórios significativos. De acordo com Dany Oliveira, executivo sênior de aviação e transição energética, o Brasil possui vantagens como a vasta experiência na produção de etanol e a experiência de empresas como a Raízen, que já produz SAF a partir de etanol de segunda geração. No entanto, questões regulatórias podem dificultar o avanço no mercado.
"No curto prazo, a exportação de etanol para os EUA pode colocar o Brasil em uma posição de destaque, especialmente por termos a tecnologia para a produção de etanol de segunda geração", afirma Oliveira. Para ele, a capacidade do Brasil de fornecer etanol competitivo e com baixo impacto ambiental é um ponto forte, mas ainda existem obstáculos regulatórios que precisam ser superados, como as questões de certificação de sustentabilidade relacionadas ao etanol brasileiro.
Outro ponto crucial apontado pelo especialista é a necessidade de biorrefinarias no Brasil. Oliveira destaca que, "quando tivermos biorrefinarias operando em território nacional, o Brasil deve reavaliar sua estratégia e buscar ser um fornecedor de SAF, e não apenas exportador de commodity". Isso garantiria ao país a liderança na produção de SAF com maior valor agregado, segundo Oliveira.
Brasil quer reduzir emissões

Em 2024, o governo federal sancionou uma lei que criou o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação, que pode potencializar o Brasil como nova liderança mundial nesse setor. De acordo com a iniciativa, os operadores aéreos deverão reduzir as emissões de gases do efeito estufa a partir de 2027 com o uso do SAF.
No primeiro ano, a redução deve ser de 1%, chegando a 10% menos em 2037. Hoje, o SAF já emite cerca de 75% menos gás carbônico em toda sua cadeia (desde a produção até a queima no motor) em comparação com o querosene de aviação usado atualmente, que é de origem fóssil.
Mas será necessário um pesado investimento público para transformar o país no líder da que vem sendo chamada de "nova OPEP sustentável", em alusão à Organização dos Países Exportadores de Petróleo.
Já disponível, mas importado
No Brasil, a Vibra passou a disponibilizar em março ao mercado a primeira opção de SAF a partir do óleo de cozinha usado, matéria prima tipicamente poluente, mas que pode ganhar uma nova função. Ao todo, foram 550 mil litros importados da Bélgica. O produto pode ser misturado na proporção de 10% do biocombustível para 90% do querosene tradicional para ser usado nos aviões.
Mesmo com o primeiro lote importado, Marcelo Bragança, vice-presidente de operações, logística e fornecimento da Vibra, diz acreditar no potencial do Brasil, que tem tecnologia e experiência na produção de biocombustíveis em larga escala. " O país detém uma vantagem competitiva única que é a disponibilidade de matérias-primas abundantes e diversificadas, incluindo cana-de-açúcar, resíduos agrícolas, óleos vegetais e gordura animal, que oferecem potencialmente múltiplas rotas de produção para SAF com custos competitivos e baixa pegada de carbono", diz o executivo.
A empresa planeja, a partir de 2027, passar a substituir o produto importado por um produzido nacionalmente. Nesse cenário, a empresa não descarta que o país tenha potencial para, além de suprir a demanda interna, exportar o produto no longo prazo.
"A infraestrutura logística e industrial do país pode se constituir em outro diferencial importante com o avanço dos investimentos e da regulação, contribuindo para que possamos não apenas ter uma produção eficiente, mas também uma exportação competitiva. Diante de uma demanda global crescente, impulsionada por metas obrigatórias de SAF na Europa (ReFuelEU), nos EUA (Sustainable Aviation Fuel Grand Challenge) e em outros mercados importantes, o Brasil está bem posicionado para se tornar um fornecedor estratégico", afirma o executivo.
"Quando os projetos de produção de SAF no mercado brasileiro efetivamente entrarem em produção, o Brasil não será apenas um mero consumidor do produto, mas será protagonista na nova economia de baixo carbono, com potencial de se tornar um ator relevante no mercado internacional de SAF", afirma Bragança.
Iata é otimista com sustentabilidade
Para Pedro de la Fuente, gerente de relações exteriores e sustentabilidade da Iata (Associação Internacional de Transportes Aéreos), o setor tem de insistir nas metas chamadas de net zero, ou seja, zero emissões de poluentes até 2050.
A instituição, que representa empresas e entidades do setor aéreo mundial, tem programas discutidos com toda a indústria, e, segundo de la Fuente, ainda é preciso evoluir em diversos aspectos para atingir esse objetivo. Veja os principais pontos da entrevista a seguir:
UOL: A indústria está avançando no ritmo necessário para alcançar o net zero (saldo zero em emissões de carbono) em 2050?
Pedro de la Fuente: O progresso tem sido lento. O SAF representa 65% da redução necessária, mas a produção ainda é muito baixa — apenas 0,3% do consumo total de combustível de aviação. Esperávamos números mais altos devido às novas instalações de produção do combustível, mas ainda não atingimos o ponto de virada para as metas de 2030. Precisamos de políticas que incentivem investimentos para atingir 5% de redução de emissões até 2030 e 65% até 2050.
UOL: Que políticas os governos podem adotar para estimular a produção de SAF?
Pedro de la Fuente: Três principais medidas: expandir biorrefinarias e coprocessamento, pois muitas refinarias podem ser adaptadas para SAF rapidamente; diversificar matérias-primas, indo além do álcool para Jet, já que há 11 caminhos técnicos para produzir SAF, e estabelecer um sistema global de gerenciamento de SAF, permitindo comércio internacional de créditos ambientais e garantindo um mercado mais dinâmico e integrado.
UOL: A meta de 2050 pode ser postergada para 2060?
Pedro de la Fuente: Obviamente, há muitos desafios pela frente. Mas também não podemos ficar sentados e dizer que, porque não temos capacidade hoje, vamos desistir das mudanças climáticas e do impacto que elas têm. As mudanças climáticas são uma ameaça existencial e todos e todas as indústrias devem lidar com as mudanças climáticas.
Então, reduzir as emissões é nossa principal prioridade e não queremos desistir de que podemos atingir a meta até 2050. Mas esta é uma medida autoimposta na aviação, mas requer intervenções governamentais. Requer política e o movimento lento da política é algo que também estamos acompanhando de perto porque elas não estão lá.
O progresso é muito lento nas implementações de políticas, nas definições, nas diferentes coisas que precisam mudar para que o SAF se torne uma mercadoria nos diferentes mercados, nos vários mercados.
UOL: Como engajar o público final?
Pedro de la Fuente: A conscientização cresceu. Hoje, 84% dos passageiros reconhecem a importância de SAF para a descarbonização da aviação, frente a 40% em pesquisas anteriores feitas pela Iata.
Do combustível convencional [de origem fóssil], do momento em que você está extraindo e perfurando o petróleo, você já está colocando carbono no ar. Assim como durante todo esse processo, através da refinaria, transporte, armazenamento, até a asa da aeronave, você queima, queima, queima, queima, queima. No SAF, você está reduzindo parte das emissões dessa cadeia de suprimentos.
O SAF reduz as emissões em até 80%, pois sua cadeia produtiva captura carbono. É essencial comunicar melhor esse impacto positivo ao consumidor final, ou seja, os passageiros.
UOL: Como as tarifas e políticas de Trump podem afetar o mercado de SAF?
Pedro de la Fuente: O governo dos EUA está mais protecionista que anteriormente. Mas não acredito que o escoamento da produção será limitado ou dificultado por essas leis protecionistas. O que podemos ver com essa nova guerra tarifária são provavelmente limitações nas importações dessas matérias-primas para o mercado dos EUA, mas não necessariamente algo que possa dificultar ou afetar o controle, de uma certa forma da produção geral, seja você controlando-a como um mercado específico ou entregando ela para outras partes do mundo.
O UOL entrou em contato com a American Carbon Alliance e com a Raízen, mas ambas não quiserem responder às perguntas enviadas.
Reportagem
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