A globalização das chamadas "pílulas do aborto" mudou o acesso à interrupção da gravidez no mundo e reduziu a importância de leis restritivas. É o que afirma Sydney Calkin, professora de geografia humana na Queen Mary University of London e autora do livro "Abortion Pills Go Global".
Ela defende que o uso clandestino da mifepristona e o misoprostol, medicamentos considerados seguros pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para a interrupção da gravidez, ajuda a diminuir o estigma em torno do aborto e pode ser um caminho para a descriminalização.
"Me inspiro nas ativistas que pararam de se importar com a lei e as instituições políticas e simplesmente decidiram que iriam criar acesso por conta própria, que o acesso seria sua prioridade e que a mudança legal viria depois", diz a pesquisadora.
Em sua pesquisa, Calkin chega à conclusão de que o fluxo de medicamentos, comprados em grande parte em farmácias virtuais indianas, teve papel importante nos processos de descriminalização na Irlanda e Irlanda do Norte.
"Mesmo pessoas que não se consideravam pró-aborto acreditavam que era errado prender alguém por acessar pílulas abortivas. Isso tem um efeito na opinião pública que pode mudar as estruturas políticas e legais."
A sra. descreve uma globalização do comércio das "pílulas do aborto", que são a mifepristona e o misoprostol. De que forma esse comércio global impacta o cenário do aborto no mundo?
As pílulas abortivas transformaram o acesso ao aborto, especialmente onde ele é ilegal. As regulações do aborto estão ligadas a hospitais, clínicas, e as pílulas ajudam as pessoas a evitarem esses espaços e não dependerem de médicos. Isso significa que, em países onde o aborto é clandestino, as pílulas fazem essas leis serem cada vez mais difíceis de impor.
Os medicamentos são baratos de fazer e comprar, são pequenos e se movem de forma relativamente fácil pelas fronteiras. Além disso, eles são muito, muito seguros. São usados há décadas, testados extensivamente. Esse aborto não é como os "açougues" que vêm à cabeça quando se fala de aborto clandestino.
Como a disseminação do aborto feito com essas pílulas afeta as leis dos países onde elas são usadas?
No livro eu falo de quatro países onde o uso de pílulas é disseminado e nem todos têm o aborto legal. Os remédios tiveram papéis diferentes, não existe uma fórmula universal.
Na Irlanda do Norte, as pílulas tiveram um efeito positivo e foram parcialmente responsáveis pela mudança na lei. Já na Polônia e nos Estados Unidos, que têm um uso altamente disseminado desses medicamentos, não vimos o mesmo efeito.
Ainda assim, a existência dessas pílulas torna o aborto mais disponível e mais seguro, seja ele legal ou não.
Nos EUA, mais da metade dos abortos são realizados com os medicamentos e existe uma forte pressão dos movimentos antiaborto para que o registro de um deles, a mifepristona, seja revogado na gestão Trump. Como isso afetaria o acesso ao aborto?
É difícil falar sobre os EUA com certeza neste momento. O que acontece hoje, depois da reversão de Roe vs Wade, é que os estados que queriam banir o aborto acabaram com a permissão para qualquer método, então hoje não é legal fazer aborto com as pílulas na Louisiana.
Mas como a mifepristona é regulamentada, está disponível nos estados onde o aborto é legal. É por isso que a gente tem casos como o da médica de Nova York que está sendo processada por enviar pílulas a uma paciente na Louisiana. Se o registro for revogado, isso afetará também os estados onde o aborto continua legal, mas a mifepristona já é clandestina em grande parte dos EUA.
Os estados conseguem de fato impor essas restrições de acesso às pílulas abortivas?
Nós já estamos vendo pessoas em estados onde o aborto é ilegal conseguindo as pílulas por outros meios.
Certamente há pessoas que obtêm comprimidos através das redes sociais. Há grupos no México agora que enviam comprimidos para os EUA, há grupos internacionais como Aid Access, Women on Web ou Women Help Women. Há farmácias online que, em grande parte, operam da Índia e basicamente fornecem a mesma medicação que as redes internacionais fornecem.
Quais são os riscos que se corre fazendo o aborto com esses medicamentos?
A OMS afirma que o aborto autogerido com remédios se qualifica como um aborto seguro. Acho que a dificuldade é a falta de acesso à informação. As pessoas que são mais vulneráveis quando estão autogerenciando seus próprios abortos são as que não têm boas informações sobre como conseguir os comprimidos, como usá-los.
Não é necessário ter um médico, mas algum tipo de apoio é essencial, para informar as pessoas até que ponto da gravidez elas podem usar as pílulas, como usá-las. Pessoas que têm bons vínculos e conhecem esses grupos internacionais têm muito apoio. Mas as que já são marginalizadas, por muitas razões diferentes, são as mais vulneráveis a serem processadas. Talvez elas não sejam tão boas em esconder as evidências de que os compraram. Ou acabam indo a um hospital, e os médicos as denunciam.
O que as primeiras políticas de Trump em relação ao aborto nos dizem sobre como ele deve tratar a questão?
Eles já fizeram a parte difícil. Eles conseguiram derrubar Roe vs Wade. Acho que parte da razão pela qual estou interessada no aborto autogerido com pílulas é porque me inspiro nas ativistas que pararam de se importar com a lei e as instituições políticas e simplesmente decidiram que iriam criar acesso por conta própria, que o acesso seria sua prioridade e que a mudança legal viria depois.
Eu não me sinto otimista sobre o que vai acontecer sob outra administração Trump, mas não adianta prever o tipo de novas táticas loucas que eles vão criar para restringir ainda mais o acesso. Acho que estou mais interessada em olhar para o que as redes de ativistas estão fazendo para dizer "não importa o que as leis estão fazendo, vamos construir outras maneiras de acessar".
Nesse sentido, o acesso fácil às pílulas e o fato de serem seguras podem agir como um desmobilizador de processos por mudança das leis?
Isso é algo que eu vi ser debatido dentro do ativismo pelo aborto, a ideia de que tornar as pílulas abortivas fáceis de acessar em segredo ajuda a manter o estigma. Ou de que isso tira a pressão sobre o Estado, porque significa que não há uma crise de saúde pública de mortes por aborto clandestino e inseguro com a qual ele tem que lidar.
Acho que estou mais convencida de que elas promovem descriminalização social. Essa é a visão de que tornar as pílulas abortivas acessíveis e difundidas na verdade não as torna um segredo público, as torna mais uma característica normal da vida cotidiana. Foi o que vimos acontecer nas Irlandas. O conhecimento de que as pessoas estavam contornando as proibições de aborto obtendo medicação abortiva mudou as atitudes públicas sobre o aborto e sobre a criminalização.
Na Irlanda nunca houve processos por pílulas abortivas, mas na Irlanda do Norte, sim. Quando isso aconteceu, a opinião pública se moveu fortemente contra esses processos. Mesmo pessoas que não se consideravam pró-aborto acreditavam que era errado prender alguém por acessar pílulas abortivas. Isso tem um efeito na opinião pública que pode mudar as estruturas políticas e legais.
RAIO-X | Sydney Calkin
Professora de geografia humana da Queen Mary University of London, é autora do livro "Abortion Pills Go Global" (California University Press, 2023). É doutora em política pela Universidade de York (Inglaterra) e mestre em relações internacionais pela Universidade Saint Andrews (Escócia).