A gente estava torcendo tanto pelo nome de Fernanda Torres, temendo tanto ouvir o de Demi Moore, que demorou um tempo para perceber o que tinha acontecido ali, na frente de mais de alegado um bilhão de pessoas.
Os votantes da Academia, ou pelo menos uma grande parte deles, já vivem no mundo distópico e aterrorizante retratado em "A Substância", em que tanto a protagonista deste filme quanto a de "Ainda Estou Aqui", com 62 e 59 anos, respectivamente, não servem mais e precisam ser substituídas por outras mais jovens.
É meio uma tradição do Oscar premiar atrizes consideradas grandes promessas. Não é por outro motivo que Fernanda Montenegro, indicada por "Central do Brasil", acabou perdendo para Gwyneth Paltrow, de "Shakespeare Abandonado", em 1999.
Gwyneth tinha 27 anos. Fernanda Montenegro tinha 70. Paltrow é uma atriz tão sem sangue nas veias que acabou optando pela carreira de influencer de beleza e bem-estar em vez de cumprir a tal promessa que o Oscar parecia prever.
Angelina Jolie, que protagonizou o filme mais ambicioso de sua carreira no último ano, "Maria", em que interpreta a soprano Maria Callas, não foi nem indicada. Mas ganhou o Oscar de Melhor Atriz em 2000, por "Garota, Interrompida", quando tinha 24 anos. Nicole Kidman, protagonista de um dos melhores longas-metragens do ano passado, "Babygirl", também não foi indicada.
Mas levou a estatueta em 2003, aos 36 anos, por "As Horas". Jennifer Lawrence foi premiada aos 22, Jodie Foster aos 26 e mais uma vez aos 29. Jennifer Hudson ganhou o prêmio aos 25, Hilary Swank aos 25. Anna Paquin ganhou o Oscar aos 11 anos, por "O Piano".
O ator mais jovem a levar o prêmio de melhor ator foi Adrien Brody, da primeira vez, aos 29 anos. Foi em 2002, e virou assunto em todos os jornais, revistas, sites e programas de TV. Um garoto levando o prêmio máximo do cinema, ó, que coisa extraordinária.
Quem assistiu à cerimônia inteira no domingo pôde ver o que isso fez com ele. Vencedor mais uma vez por seu papel em "O Brutalista", fazia um discurso de agradecimento emocionado quando começou a ser interrompido pela tradicional musiquinha de orquestra e decidiu que não, aquilo não ia acontecer com ele, afinal já era a segunda vez que ele conquistava esse feito.
Você vê alguma das atrizes citadas acima fazendo uma demonstração pública de egocentrismo como a de Adrien Brody? Mais fácil Halle Berry, se um dia for premiada de novo, repetir a crise de choro que teve em 2002, aos 36 anos. Ou Julia Roberts demonstrar o mix de felicidade e incredulidade que marcou o discurso de agradecimento mais delicioso de todos os tempos, quando ganhou por "Erin Brocovitch", em 2000. Tinha 39 anos. Já era uma veterana.
Demi Moore, sentada na primeira fileira com um vestido com cara de "já ganhou", todo prateado, quase não precisava disfarçar quando o nome de Mikey Madison foi lido por Emma Stone, que levou o mesmo prêmio ano passado, aos 35 anos. Ela já devia saber, mas mesmo assim soltou o que pareceu ser um "whaaat?".
"Anora" é um grande filme, de um grande cineasta, Sean Baker, com uma protagonista hábil, destemida e exuberante. Combina temas voláteis, complexos, profundos com uma execução caleidoscópica e inesquecível. O filme é um triunfo, assim como a interpretação da protagonista, que dá vida a uma heroína cheia de falhas, mas feroz, tão bela quanto desgastada pela vida.
O clube de strip onde Ani, apelido da personagem principal, trabalha atrai todo tipo de desajustado, alguns com mais dinheiro do que outros. Vanya (Mark Eidelstein), por exemplo, é o filho desajeitado e mimado de um oligarca russo, que tem acesso irrestrito à mansão dos pais em Brighton Beach e mais dinheiro do que sabe gastar.
Vanya é um garoto doce, fracote, com a inexperiência de um adolescente e o egoísmo de um também. Como Richard Gere em "Uma Linda Mulher", oferece à dançarina que fala russo US$ 15 mil para ser sua "namorada" por uma semana. Quando fecham o acordo, Ani confessa que teria aceitado por US$ 10 mil.
Vanya sorri e admite que teria chegado a US$ 30 mil. Essa é a medida do "amor" entre eles. Talvez todos os relacionamentos sejam, de alguma forma, negociados entre as partes. Neste caso, pelo menos, tudo está às claras. Vanya é o comprador e Ani, a vendedora.
Ele tem dinheiro vivo, ela oferece fogos de artifício sexuais. Por um tempo, os dois até conseguem se convencer de que são iguais, parceiros de negócios, e que esse romance fabricado pode dar certo. Mas tudo desmorona espetacularmente após o casamento em Las Vegas.
Vanya e Ani passam pela cerimônia embalados pelas maravilhas da champanhe e da cocaína. A ressaca será brutal –para a noiva, claro.
O filme parece um trem descarrilhado soltando faíscas de Manhattan até Coney Island, numa trajetória que sai de uma fantasia vulgar à realidade dura, cruel, em que os sentimentos são um luxo que nem todo mundo pode se dar.
"Anora" se aprofunda e escurece a cada reviravolta, desafiando os clichês de Hollywood. Ani, a personagem, é um brinquedo, descartável. Mas também pode ser uma arma. Igualmente descartável, mas, lançada no alvo certo, derruba tudo.
Como filme, é infinitamente melhor, mais bem escrito, bem realizado e bem executado que "A Substância". Demi Moore, na idade de Mikey Madison, poderia fazer esse papel com a mesma garra. O contrário não dá para saber por um bom tempo. E Fernanda Torres poderia fazer ambos, com maestria.