Décadas atrás, arqueólogos adotavam um método chamado álgebra de mapas na tentativa de identificar locais com maior probabilidade de abrigar sítios arqueológicos. Diferentes características eram consideradas —por exemplo, se resquícios do passado eram encontrados em regiões montanhosas, então localidades com esse padrão tinham maior chance de ter um sítio.
A mesma lógica era aplicada a outros fatores, como vegetação e solo. Ao fim, os arqueólogos chegavam a um cálculo final, com base na junção dessas diferentes características, que indicava quais locais seriam mais interessantes para a realização de novas pesquisas.
A partir dessa técnica, outros modelos preditivos mais elaborados foram desenvolvidos no campo da arqueologia. Um desses casos envolve o projeto Maphsa (mapeamento do patrimônio arqueológico pré-colombiano da América do Sul).
A iniciativa procura desenvolver uma base de dados de livre acesso com a documentação do patrimônio cultural de regiões da América do Sul. O foco são locais que correm maior risco de terem seus patrimônios destruídos, como o cerrado brasileiro, e a floresta Amazônica, ambas extremamente suscetíveis a desmatamento.
Uma parte do projeto envolve documentar sítios arqueológicos nessas regiões. Para isso, os pesquisadores reuniram imagens de satélites já publicadas desses sítios. A ideia é que, a partir desses dados, uma inteligência artificial (IA) seja treinada para identificar outros ainda desconhecidos.
Jonas de Souza, gerente de projeto do Maphsa, diz que a intenção é criar dois modelos de IA diferentes. Um deles é preditivo e segue uma lógica parecida com a álgebra de mapas, mas lança mão de recursos tecnológicos mais recentes. "A gente está tentando prever, a partir de variáveis ambientais, a probabilidade de ocorrência de sítios arqueológicos em determinadas áreas."
Inicialmente, Souza e outros cientistas trabalham com parte da Amazônia colombiana, já que existem mais informações de localidades que foram previamente analisadas e catalogadas de acordo com a presença ou não de sítios arqueológicos. Com esses dados, é possível treinar e avaliar a IA para, então, aplicar o método preditivo em outros locais envolvidos no projetos –o caso da Amazônia brasileira, por exemplo.
Outro modelo desenvolvido no Maphsa se encontra em estágio mais avançado. Ele parte do fato de que, pelo menos na Amazônia, os sítios arqueológicos normalmente podem ser detectados devido à interferência humana na vegetação. "Então, por causa da ocupação humana [...] ao longo de séculos ou milênios, existe um sinal visível ainda hoje na vegetação", afirma Souza.
Dessa forma, os pesquisadores queriam entender se seria possível construir uma IA que analisasse imagens de satélite para identificar tais marcas na vegetação. Alcançar esse feito envolveu treinar a inteligência com registros que representavam esses sinais humanos na mata e testá-la em uma região próxima a essa das imagens originais. "Tivemos um resultado bastante positivo, porque conseguimos detectar [a partir da vegetação] várias dessas possíveis anomalias", diz o gerente de projeto Maphsa.
Mas isso é só o começo. A IA precisa ser refinada, além do mais é preciso checar in loco se realmente a detecção da ferramenta é um sítio arqueológico. Outro detalhe é a necessidade de adaptar o método para diferentes regiões. Ao testar em uma localidade mais distante, a IA não funcionou adequadamente.
Esse último aspecto mostra que, na arqueologia, é importante desenvolver diferentes modelos de IA a depender da região. E isso é reiterado por Parker VanValkenburgh, professor associado de antropologia da Universidade Brown, nos Estados Unidos, e diretor do laboratório de arqueologia digital da mesma instituição.
Atualmente, ele trabalha com IA no projeto Geopacha (plataforma geoespacial de cultura, história e arqueologia andina). Por meio dessa tecnologia, espera-se mapear sítios arqueológicos nos Andes, cobrindo uma vasta área de toda essa região.
Esse projeto também recorre a imagens de satélite de sítios arqueológicos para treinar a IA –nesse caso, registros dos Andes. No entanto, o objetivo é desenvolver um modelo mais acurado, que faça distinções não só entre o que pode ser ou não um sítio arqueológico, mas que analise uma região e identifique características relacionadas a uma civilização ou período histórico, por exemplo.
A ferramenta pode ser útil nas pesquisas na região, mas também existe uma preocupação de que possam ter seu uso desvirtuado. VanValkenburgh procura assegurar a privacidade de dados a fim de evitar exposição de sítios arqueológicos, que podem ser alvos de ataques ou destruição.
"No projeto Geopacha, [nós evitamos esse problema ao] não dar às pessoas um mapa preciso para encontrar cada sítio arqueológico. Estamos interessados em observar padrões. Assim, uma das formas de evitar tornar o patrimônio vulnerável é mostrar a densidade em vez de informações pontuais", afirma ele.
VanValkenburgh ainda menciona que a ideia não é criar uma espécie de arqueólogo digital, e sim uma ferramenta que ajude os cientistas.
Ponto semelhante é destacado por Peter Schauer, professor associado de arqueologia digital no departamento de arqueologia na Universidade de York, no Reino Unido.
Schauer afirma que arqueólogos adotam recursos tecnológicos há anos. Existem registros, desde os anos 1980, do interesse em usar banco de dados em pesquisas nesse campo científico. Outros métodos, como dados espaciais e informações topográficas de sítios arqueológicos, também foram integrados a essa ciência. "Sempre houve partes da arqueologia que são bastante inovadoras e desejam usar essas ferramentas tanto quanto possível."
Inteligências artificiais, para Schaeur, são só mais um desses usos. "Não creio que [as IAs] serão uma mudança radical [para a arqueologia]. Acho que só vão acelerar ainda mais certas tendências que já estão presentes. Poderão, por exemplo, aumentar o interesse em métodos analíticos."