O motorista Renato Evangelista Demétrio, 38, após perder sua casa em Eldorado do Sul nas enchentes que atingiram a região em maio, buscou ajuda de uma amiga do curso de psicologia para atendimento psicológico. Foi quando ela indicou o projeto voluntário de apoio à saúde mental Cuidado Psi.
Em julho, Renato enviou uma mensagem para o número de WhatsApp e, na mesma hora, recebeu indicação de uma profissional para ajudá-lo no enfrentamento do trauma. "Ela me acolheu no mesmo dia e horário", diz ele, que está tentando reduzir o estresse vivido após a tragédia.
O atendimento, totalmente online, já tem ajudado o paciente a dormir melhor. "Esses acontecimentos mexem bastante [com a gente], e voltar ao local e me deparar com o ambiente onde morava, totalmente destruído, afeta bastante o meu sono, muitas vezes sonho com aquela situação continuamente", conta.
O motorista não é único. Desde o início das chuvas, em maio, 183 pessoas foram mortas, 806 foram feridas, 28 continuam desaparecidas e mais de 2,39 milhões foram afetadas em 478 municípios, segundo o último boletim da Defesa Civil do estado, divulgado no dia 9 de agosto.
Ticiana Paiva, psicóloga com formação em intervenção pós-desastre e professora da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Campinas, explica que as fases após uma tragédia como essa requerem um atendimento especializado.
"Nós temos uma ocorrência que é uma situação extrema, que envolve muitas vezes um número elevado de mortes, e isso de alguma forma já mobiliza emocionalmente. Depois, vem uma tristeza intensa, insônia, dores no corpo, diversos sintomas que são reações emocionais e que, se não cuidados, podem se transformar em um processo depressivo ou ansioso a médio prazo", explica.
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Neste cenário, passados mais de três meses da tragédia, a recomposição do sistema de saúde gaúcho ainda precisa de apoio federal, estadual e de profissionais autônomos, em que a telemedicina pode ter um grande papel. "A telemedicina é uma via muito potente para a gente chegar em locais que muitas vezes ainda estão completamente desestruturados", diz Paiva.
Os atendimentos virtuais podem, em um primeiro momento, detectar os problemas mais urgentes de saúde e, em um segundo momento, dar suporte psicológico aos afetados, explica Christian Kristensen, professor de psicologia da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
"Quando a gente fala de eventos relacionados ao clima, como as enchentes, a gente sabe que tem pelo menos dois impactos: os estressores primários, como a falta comida, perda da casa, perda de vidas, e em seguida vêm os estressores secundários, que é a pessoa perder o emprego ou não existir mais o local de trabalho, não ter mais local de saúde para atendimento, não conseguir retirar o medicamento. E esses estressores secundários têm um impacto ainda maior na saúde mental do que os primários", explica.
Um estudo feito no Reino Unido aponta que pessoas que vivenciam uma tragédia climática com necessidade de deslocamento de suas residências têm uma prevalência estimada de 20% de ansiedade e em torno de 20% para TEPT (transtorno do estresse pós-traumático) até 12 meses após a enchente.
"Ou seja, não é só um problema imediato do manejo [da destruição], é um problema que se prolonga no tempo. Por isso é tão importante desenvolver estratégias não só para os primeiros socorros, mas que envolvam também a psicoterapia do ponto de vista de saúde mental", diz.
Kristensen é um dos coordenadores de dois projetos nessa frente: o TelePsi e o Text4Hope. Lançado no último dia 5 de agosto, o Text4Hope é uma parceria do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse da PUCRS e da Universidade de Dalhousie, no Canadá, que envia mensagens de texto baseadas na terapia cognitivo-comportamental (TCC). O modelo, já utilizado para atendimento após tragédias, dá suporte psicológico para ajudar as vítimas a lidarem com situações estressantes por meio de vídeos ou texto.
Já o TelePsi é mais focalizado tanto na educação dos profissionais de saúde quanto na intervenção psiquiátrica e psicológica a partir de teleconsultas individualizadas. "Foi muito usado na pandemia da Covid, para ajudar os profissionais de saúde, e agora adaptamos os materiais para enchentes", diz.
Débora Candido de Azevedo, psicóloga e supervisora clínica do CuidadoPsi, destaca que as ferramentas de atendimento virtual são aliadas, mas não devem ser usadas como primeiro contato durante a emergência.
"Qualquer tipo de tragédia, as primeiras horas até que todo mundo esteja em segurança precisa do atendimento presencial, não é a telemedicina. Ela entra em um segundo momento que a gente chama de prevenção secundária ou prevenção terciária", diz.
"O foco principal deste trabalho, quando a psicologia entra nessa situação de emergências e desastres, é justamente de prevenir que a situação estressante vire um trauma e que esse trauma vire crônico, um transtorno mental", explica.
Apesar de muitas dessas iniciativas hoje estarem presentes no Sul, um problema comum apontado por todos é a falta de políticas de apoio e divulgação antes que os desastres aconteçam.
"A gente sabe o que fazer, existe a tecnologia, só que ninguém aprendeu. Aí você chega na hora do incêndio e quer treinar o bombeiro, isso não vai funcionar, né?", afirma Kristensen.
A ampliação dos usos da telemedicina pode, inclusive, atingir outras áreas, não só a de saúde mental. Desde 2007, o Rio Grande do Sul foi embrião de um projeto conhecido como TelessaúdeRS, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) com apoio da Secretaria de Estado de Saúde para prestar consultorias aos profissionais de saúde da atenção primária. Segundo Natan Katz, médico especialista e vice-coordenador do programa, eles fazem mais de 400 atendimentos por semana.
"A gente já tinha uma demanda reprimida [de atendimento] e com as enchentes do Rio Grande do Sul, mesmo agora que algumas das unidades estejam se restabelecendo, essa demanda teve um fluxo novo", afirma. Diferente das demais iniciativas, o TelessaúdeRS não tem foco só em saúde mental, mas atende todas as especialidades.
O projeto também era apoiado pelo Ministério da Saúde, mas os contratos vigentes têm encerramento neste mês e não foram renovados.
Procurada, a Secretaria de Estado de Saúde do RS disse que diante das dificuldades de acesso, intensificou a prática de teleatendimento se alinhando ao fortalecimento do TeleSsaúdeRS e abrindo novos canais de atendimento remoto. Disse também que cerca de mil profissionais voluntários de todo o Brasil participaram do acolhimento de cidadãos, e que foram realizadas 8.000 consultas em mais de 30 especialidades em 114 municípios que se beneficiaram da plataforma.
A Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre afirmou que não há atualmente serviços vigentes de telemedicina, mas que recebe apoio na atenção primária do programa TeleSsaúdeRS. "Entretanto, as tecnologias de teleatendimento e saúde digital vem sendo analisadas pela prefeitura com o intuito de avaliar sua potencial contribuição", disse a nota.
Segundo o município, 14 das 134 unidades de saúde permanecem fechadas em razão das inundações, assim como dois Caps (Centro de Atendimento Psicossocial).
Já o Ministério da Saúde disse, por meio de nota, que os serviços de telessaúde foram essenciais para apoiar o estado durante e após a reconstrução da saúde e que foram realizados encontros para oferecer serviços de telessaúde disponíveis, incluindo aqueles voltados para a saúde mental, como o envio de equipamentos de informática, incluindo mais de 1.500 computadores e 106 switches entregues no estado.
Em relação ao fim do contrato com o TelessaúdeRS, a secretaria de Informação e Saúde Digital, Ana Estela Haddad, afirmou que tem interesse em continuar colaborando com o projeto, desde que ele siga as normativas do programa Saúde Digital, lançado pelo governo federal este ano.
Este projeto foi financiado pelo ICFJ (International Center for Journalists) por meio do edital de Inovação em Saúde