Vestido de Oxum — entidade feminina do candomblé — em praça pública, o padre José de Sousa Pinto (1947-2019) chocou parte da comunidade católica baiana em janeiro de 2006 e acabou, como consequência, afastado da paróquia e de suas atividades sacerdotais. A peça "Padre Pinto: A Narrativa (Re)inventada" mergulha na vida controversa e fascinante do padre e não apenas conta sua história, antes, a (re)inventa e tece uma narrativa que mistura fatos históricos com elementos ficcionais, explorando as ambiguidades e contradições do personagem.
Numa estrutura não linear, com flashbacks e saltos temporais que revelam diferentes momentos da vida do padre, a peça reflete a complexidade dessa figura multifacetada. Diferentes vozes se alternam para apresentar perspectivas distintas sobre o clérigo de espírito e alma livres. Além da voz do próprio Padre Pinto, outros personagens, como seus fiéis, seus opositores e até mesmo figuras religiosas, narram suas experiências construindo um mosaico de interpretações sobre sua vida e obra.
O espetáculo junta atores e músicos do teatro Oficina a artistas e profissionais baianos da música e da dança criando uma celebração catártica digna daquele que revitalizou a Festa de Reis no bairro da Lapinha, na capital baiana. A expressividade dos atores destaca-se nessa montagem. Além de Ricardo Bittencourt, que faz o personagem-título com a irreverência e brilho necessários, Sylvia Prado e Rita Brandi também estão formidáveis como a mãe do padre e uma fiel seguidora, respectivamente, com diálogos que exploram a força das palavras e a beleza da língua portuguesa.
A peça que tem direção e dramaturgia de Luiz Marfuz joga luz sobre temas importantes, como fé, religião, poder, sexualidade, preconceito e liberdade. A figura exuberante do sacerdote é utilizada para discutir essas questões e nos leva a refletir sobre nossos próprios preconceitos e a repensar a forma como lidamos com a diferença. Ninguém sai ileso do teatro depois de ver Padre Pinto.
Três perguntas para…
… Ricardo Bittencourt
Na sua visão, qual a importância de trazer para o palco a história do Padre Pinto, um personagem tão polêmico e transgressor?
Nesse momento em que a extrema-direita mundial está vindo com todo esse discurso de intolerância, de ódio, essa proposta de praticamente exterminar as minorias, falar de Padre Pinto é importante porque ele sempre combateu qualquer tipo de discriminação: religiosa, sexual, social… Com ações concretas contra qualquer tipo de preconceito. E agora que [Donald] Trump vem e atiça a extrema-direita com discurso de ódio e de intolerância ampla, total e irrestrita, Padre Pinto termina sendo mais do que uma fonte de inspiração, um farol que nos indica o caminho a seguir.
Como você equilibrou a necessidade de representar esse personagem real com a liberdade artística de criar uma interpretação própria?
Desde que comecei a fantasiar, desejar, e querer colocar Padre Pinto em cena, eu quis quebrar o ciclo de silenciamento que foi imposto à vida dele. Desde o começo quis evitar mimetizá-lo. Por outro lado, ele tinha características e trejeitos muito específicos de se movimentar, de dar risada, de olhar, que não dava para fugir. Então eu estudei bastante, inclusive tive acesso ao filme "As Fitas Malditas do Padre Pinto", do Daniel e Diego Lisboa, um filme que ainda não foi lançado, onde eles nos apresentam o Padre Pinto em sua mais profunda intimidade. A partir desse estudo, fiz uma seleção de gestos, peculiaridades, trouxe para mim, e o reinventei no palco. O Padre Pinto, que há em mim, pôde então aflorar com uma liberdade de tons, movimentos e intensidades.
Qual sua opinião sobre a relação entre religião e sexualidade presentes na obra e na vida do padre?
Tem um trecho da peça num diálogo duro com o emissário do Vaticano — papel de Sérgio Marone — que ele fala que "sufocar o desejo é trair a natureza que Deus me deu". Ele era contra o celibato e não escondia isso. Então, obviamente, ele propunha uma religião libertária, o que não é o caso da Igreja Católica. E não, por acaso, ele foi tão silenciado.
Sesc Pompeia - r. Clélia, 93, Água Branca, região oeste. Qui. a sáb., 20h. Dom., 17h. Até 23/2. A partir de R$ 21, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.