A cápsula da Boeing retornou na madrugada deste sábado (7) para a Terra. Foi a terceira vez que uma Starliner –sem tripulação– realizou com sucesso a manobra de pouso. Mas o que parece à primeira vista uma demonstração de confiabilidade na verdade esconde um mundo de problemas.
Em 2014, a Nasa contratou duas empresas para fornecer transporte de astronautas à Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Era um novo modelo de desenvolvimento do programa espacial, em que a indústria era chamada a fornecer serviços de transporte, a preços fixos, em vez de fornecer equipamento diretamente à agência espacial americana.
As duas escolhidas foram a Boeing, a US$ 4,2 bilhões, e a SpaceX, a US$ 2,6 bilhões. Ambas tinham a mesma missão: desenvolver uma cápsula capaz de transportar astronautas à órbita e testá-la duas vezes em um voo à ISS, uma sem e outra com tripulação.
Era um desafio inédito para essas empresas, e o primeiro voo, que deveria acontecer em 2017, acabou atrasando.
A SpaceX deu a largada com sua cápsula Crew Dragon, realizando um voo não tripulado (missão Demo-1) entre 2 e 8 de março de 2019, que acoplou à ISS e retornou em segurança. Contudo, um problema sério emergiu quando a mesma cápsula foi submetida a um teste de solo com disparo de alguns de seus propulsores e explodiu. A empresa teve de mudar o design do sistema e demonstrá-lo novamente em solo antes de partir para o voo de teste tripulado, que só viria a acontecer em 30 de maio de 2020, mais de um ano depois.
Essa missão histórica concluiu a certificação pela Nasa da cápsula da SpaceX e tornou a empresa a primeira no mundo a transportar astronautas à órbita. A essa altura, ela já promoveu oito voos tripulados para a agência, além de missões privadas (uma das quais, a Polaris Dawn, está prestes a partir), e o nono voo para a Nasa partirá no fim deste mês —é justamente a cápsula que, em fevereiro de 2025, trará os astronautas Barry Eugene Wilmore e Sunita Williams de volta para casa.
A despeito das dificuldades de desenvolvimento, o caso da Crew Dragon é tido como um sucesso retumbante tanto pela SpaceX como pela Nasa. A história da concorrente Starliner, contudo, é mais complicada.
Por algum tempo, parecia até que a Boeing poderia bater a SpaceX na corrida para ser a primeira empresa a levar astronautas à órbita. Seu primeiro voo de teste, não tripulado, veio em 20 de dezembro de 2019, enquanto a concorrente ainda lidava com a explosão de sua cápsula num teste de solo. Considerando isso, não era então improvável que o primeiro voo tripulado recaísse sobre a Boeing.
Contudo, o voo de teste quase terminou em uma falha catastrófica. Por conta de um problema de software, o computador da cápsula supôs que a missão estava 11 horas adiantada com relação ao tempo real. Isso a levou a disparar seus propulsores de forma inadequada, gastando tanto propelente que uma ida até a ISS ficou inviabilizada. Pior: na preparação para a reentrada, outro erro de software foi encontrado. Não tivesse sido corrigido, teria levado a uma colisão catastrófica entre o módulo de serviço e a cápsula.
Com as falhas da missão, que não permitiram demonstrar a capacidade de acoplagem com a estação, a Boeing decidiu lançar, pagando do próprio bolso, uma segunda missão de teste sem tripulação. Isso a um prejuízo estimado em US$ 410 milhões.
Problemas de software continuaram a atormentar a equipe da Boeing, e somente em agosto de 2021 a empresa se sentiu apta a lançar essa nova missão. Contudo, antes do lançamento, foram detectados problemas com 13 válvulas do sistema de propulsão. Eles não puderam ser corrigidos na plataforma de lançamento, e a empresa teve de desistir do voo, recolher a cápsula, tentar recondicioná-la, fracassar nisso e enfim trocar o módulo de serviço inteiro, o que empurrou o voo para 19 de maio de 2022.
Após a decolagem, dois dos propulsores principais do módulo de serviço falharam, mas os outros dois, somados aos 28 auxiliares, compensaram e conduziram a inserção orbital com sucesso —a acoplagem com a ISS também foi afetada por problemas com os propulsores auxiliares, mas acabou sendo bem-sucedida. A cápsula retornou em 25 de maio de 2022, realizando seu segundo pouso bem-sucedido em White Sands.
O PRESENTE COMPLICADO
Passaram-se mais de dois anos até que a Starliner voltasse a voar, desta vez levando dois tripulantes, Wilmore e Williams. Eles partiram para o espaço em 5 de junho deste ano. Antes mesmo da decolagem, a Boeing já havia detectado um vazamento de gás hélio (usado para pressurização dos tanques dos propulsores) no módulo de serviço, porém assumiu que a perda era muito pequena para justificar um reparo antes do voo.
Para piorar, ao subir à órbita, o que era um vazamento virou três, que viraram cinco. Ainda assim tidos como pouco relevantes. Mais crítico, entretanto, foi a detecção de novas falhas nos propulsores auxiliares durante a manobra de acoplagem, aparentemente por superaquecimento.
Começou aí o calvário da empresa e da agência espacial para decidir como concluir a missão. Foram semanas e mais semanas de trabalho conjunto entre Nasa e Boeing, com testes em solo e no espaço, para determinar exatamente o que estava havendo e qual o risco oferecido ao sucesso da missão.
Aparentemente, o problema surgia pelo superaquecimento dos propulsores, que, reunidos em grupos em invólucros no módulo de serviço, esquentavam mais do que cada um deles individualmente —um problema sistêmico, não detectado antes do voo. O calor adicional parecia deformar um selo de teflon dos propulsores, que impedia a passagem de propelente. E então eles perdiam potência ou se desligavam completamente.
Dos 5 propulsores auxiliares que falharam na acoplagem, 4 foram recolocados para funcionar com bom desempenho, um não. A quantidade (28) e o quanto se exigiria deles no retorno parecia sugerir aos engenheiros da Boeing que era possível voltar em segurança com os astronautas a bordo.
Sem saber exatamente se novos propulsores poderiam falhar no retorno, ou qual seria o desempenho dos que já falharam na acoplagem, a Nasa fez uma avaliação diferente. Ainda que o risco fosse baixo, a incerteza sobre ele levou à decisão —feita à revelia da Boeing— de deixar os astronautas na estação, para voltarem futuramente numa Crew Dragon.
A Nasa se espelhou em erros do passado para tomar essa decisão: nos acidentes com os ônibus espaciais Challenger (1986) e Columbia (2003), que mataram juntos 14 astronautas, foi uma subestimação dos riscos o que levou à tragédia. Agora, diante de uma alternativa mais segura, a agência preferiu não arriscar.