Sonho de infância se transforma em estudo para detecção de rara doença genética

há 1 mês 13

"Parece que eu nasci querendo ser cientista", resume Vanessa Romanelli, 39. A carreira na ciência, imaginada desde a infância, levou a pesquisadora a tentar contribuir com a saúde das pessoas, jogando atenção sobre doenças raras e a capacidade de detectá-las assim que colocamos o primeiro pezinho no mundo —pelo conhecidíssimo teste do pezinho.

Quando criança, enquanto os colegas falavam em ser professores ou jogadores de futebol, a identificação de Vanessa era com a ciência —ou, ao menos, o que a infância nos permite entender como ciência. "E, obviamente, eu era zoada por isso", diz Vanessa.

O amadurecimento só reforçou a vontade. Vieram o colegial técnico de patologia clínica, a graduação em biologia na Universidade Mackenzie, e o mestrado e doutorado em genética na USP (Universidade de São Paulo).

Hoje, como pesquisadora do Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação do IJC (Instituto Jô Clemente), lidera um projeto de identificação, por meio de triagem neonatal —leia teste do pezinho—, da Ame (Atrofia Muscular Espinhal). Trata-se, em linhas gerais, de uma rara doença genética progressiva que afeta neurônios motores, levando ao enfraquecimento de músculos.

O objetivo de tal projeto é tentar obter mais dados de vida real sobre identificação de Ame no teste do pezinho para auxiliar na expansão da disponibilidade de detecção da doença.

Isso ocorre porque, em teoria, a identificação de Ame na triagem neonatal pelo SUS já está colocada em lei. Porém, é a última etapa de uma implementação escalonada, determinada pela lei 14.154, de 2021.

O projeto do IJC, com colaboração da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo e da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, teve início em julho de 2023. A ideia é, até outubro de 2025, conseguir fazer a triagem de 192 mil bebês. Segundo Vanessa, até o momento, já foram 126 mil, entre os quais foram identificadas 10 crianças com Ame.

"Eu acho que a gente tem resultados muito promissores para servir realmente de modelo para outros estados, embora com realidades diferentes, porque a gente está falando de um país de dimensões continentais. Mas que ajude outros estados a implementarem a [detecção da] Ame também", diz a pesquisadora.

E, obviamente, não basta identificar o bebê. Vanessa afirma que, após a detecção no exame, os pais e o bebê são reconvocados para uma nova coleta, a fim de confirmar o caso. Há ainda ações de aconselhamento genético para planejamento familiar e, dependendo da gravidade do caso, pode haver um direcionamento para médicos.

"A gente tem que cuidar desse bebê de um ponta a ponta", diz Vanessa.

Genética e os desafios da ciência para uma mulher cadeirante

A Ame e a genética fazem parte da vida de Vanessa já há algum tempo. A pesquisadora tem a doença, que foi confirmada por um teste genético aos 15 anos, em uma visita a uma geneticista.

Uma consulta que ficaria marcada não necessariamente pela confirmação da doença —que havia sido diagnosticada, por outro teste, aos 7 anos—, mas pela forma como a geneticista lidou com o assunto.

"Ela me explicou o que era a Ame, a doença genética, de uma forma que eu fiquei encantada", conta Vanessa. "Eu falei: ‘é isso que eu vou fazer, eu quero seguir a genética’. Isso se fortaleceu com uma vontade muito grande de querer usar a ciência para ajudar outras pessoas com a mesma condição que eu tenho ou com condições parecidas."

À época da consulta, Vanessa ainda não era cadeirante —considerando que a Ame é uma doença progressiva.

"Andei até os 17. Era uma doença que não tinha tratamento, a gente só podia fazer fisioterapia, era uma manutenção do seu estado físico. A cada evolução da doença é um baque, não tem jeito, né?", diz a pesquisadora. A alteração genética responsável pela atrofia muscular espinhal foi descoberta em 1995, quando Vanessa já tinha 10 anos. Atualmente, apesar de ainda não haver uma cura, já há medicamentos para tratar a doença.

A vontade de estudar o tema não veio sem um pouco de receio, porém. "Eu sempre tive aquela vontade latente de trabalhar com doenças neuromusculares e com a minha doença. Mas eu tinha deixado isso para lá porque eu pensava: 'não sei se eu quero descobrir alguma coisa que eu ainda não saiba sobre a minha doença'. Eu tinha medo."

O receio acabou superado e, no pós-doutorado, Vanessa iniciou a validação de um teste de triagem neonatal para Ame.

Porém, o caminho na ciência não foi trilhado sem desafios. Segundo Vanessa, o campo científico, que já apresenta conhecidas barreiras para mulheres, também pode estar recheado por preconceito. "Eu cheguei a ouvir que eu não podia fazer pesquisa porque eu era cadeirante. Que eu nunca ia ser cientista porque eu era cadeirante."

A participação da família também foi essencial. Durante a graduação, em um projeto de pesquisa que perpassou natal e ano novo, a mãe acompanhou Vanessa no laboratório. Era necessário especialmente pela falta de acessibilidade no prédio da faculdade onde estava o laboratório do experimento.

Outra dificuldade era, por exemplo, com a centrífuga. "É um equipamento alto e, mesmo que eu alcance, ele é fundo", conta.

Além disso, com o apoio e inspiração de outras pesquisadoras, como as geneticista Maria Rita dos Santos e Passos Bueno e Mayana Zatz, ambas da USP, o trabalho foi em frente.

Muitas coisas, logicamente, ainda precisam evoluir. Um desses pontos, aponta Vanessa, é que as bolsas, como para doutorado-sanduíche, não costumam custear acompanhantes para as pessoas que os necessitam, como é o seu caso, o que a fez perder oportunidades. Ela destaca que o IJC a contempla quanto a isso.

"Isso não ser um programa Fapesp, não ser um programa CNPq...até porque, se você pensar, quantas pessoas vão requisitar esse programa? Será que é tão grande assim [o número de pessoas] que não vai ter dinheiro?", questiona. "A carreira científica é cheia de altos e baixos. Principalmente quando a gente está fazendo ciência básica, tem aquele monte de achado que não dá em nada, até você conseguir realmente alguma coisa que vai fazer diferença na vida."

Apesar disso, Vanessa vive a concretização de alguns sonhos, como o ligado ao projeto do teste do pezinho no estado de São Paulo. Os objetivos científicos, porém, vão além; a ideia é expandir a sua pesquisa no eixo das doenças raras.

Segundo a cientista, o momento atual é também um tanto surreal, conforme ela passa a ter o seu trabalho de pesquisadora reconhecido, inclusive com crianças fazendo trabalhos escolares sobre ela.

"As pessoas estão começando a conhecer quem é a Vanessa. E isso culmina na representatividade. Quero continuar sendo voz representativa para as próximas gerações e ampliar, cada vez mais, as pesquisas e as possibilidades de inovação", afirma a cientista Vanessa.

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