Silas Martí: Fotos de Gabriel Medina e Trump mostram como se captura um momento

há 4 meses 31

Duas imagens muito díspares ganharam todos os holofotes até o momento neste ano pelo mesmíssimo motivo. A mais recente é o registro do voo da vitória, literal, do surfista Gabriel Medina nas Olimpíadas de Paris, flutuando no ar sobre as ondas, sua prancha na vertical, desafiando a gravidade, em igual posição ao lado dele, com o braço direito erguido ao céu, a mão fazendo um gesto de número um.

Também dotada de ar triunfal, embora num contexto um tanto macabro, a outra mostra o ex-presidente americano Donald Trump, o rosto ensanguentado pelo rastro da bala de fuzil que rasgou sua orelha direita, erguendo o punho fechado em sinal de resistência em meio à massa de seguranças e agentes do Serviço Secreto, a bandeira americana tremulando ao fundo da composição, no dia do atentado que quase tirou sua vida.

São registros fortes, que estamparam capas de jornais e revistas, manchetes eletrônicas e até mesmo as escaladas dos telejornais, estáticas, mesmo na televisão. É aí que está a força dessas imagens. Num fluxo midiático frenético, tomado por avalanches de imagens em movimento, "reels", "stories", dancinhas de TikTok em telas sensíveis ao toque, ainda é a imagem única, congelada, que parece sintetizar e cristalizar um momento, fazer do que seria corriqueiro, um instante perdido, um registro histórico.

Na campanha eleitoral em curso nos Estados Unidos, a imagem do fotógrafo Evan Vucci, da Associated Press, parece ter acelerado a desistência de Joe Biden da corrida à Casa Branca, um ícone instantâneo da força e resiliência de um candidato ante a letargia do outro. Nas Olimpíadas, a imagem de Jérôme Brouillet, da AFP, resume num único quadro a sensação de vitória que tantos buscam testemunhar na eletricidade dos jogos, o homem mais rápido, mais alto e mais forte capturado em seu auge.

É o tal momento decisivo, como dizia Henri Cartier-Bresson. O francês se firmou na história da fotografia por suas imagens certeiras —um homem de guarda-chuva congelado no ar enquanto salta sobre uma poça d’água no Trocadéro, em Paris; o momento em que uma mulher de sobretudo cruza um grupo de monges causando um efeito de multiplicação dos figurinos apesar da diferença entre os homens e a mulher em cena; dois homens vistos numa ponte na mesma exata posição mas caminhando em direção contrária.

Jacques-Henri Lartigue, outro francês, também entrou para a história com suas visões de um mundo em ebulição, carros de corrida a toda velocidade, bicicletas rasgando a paisagem levantando poeira, saltos e acrobacias na praia.

O momento em que Medina voa sobre as águas, a corda que o amarra à prancha alinhada com perfeição à linha do horizonte e a superfície das ondas, ou o momento em que Donald Trump se levanta da confusão com o punho em riste seriam momentos decisivos no léxico de Cartier-Bresson.

Mas há uma diferença, sobretudo, técnica. Nos primórdios da fotografia, limitações das câmeras não permitiam flagras tão cristalinos em cenários de tumulto e movimento. As imagens de Trump e Medina, em perfeito foco e com um aspecto quase coreografado, são frutos de outro momento histórico em que todos os momentos podem ser decisivos, isso porque hoje existem câmeras capazes de fotografar até 6 milhões de imagens por segundo —uma delas pode ser Medina no ar ou um Trump triunfante, mas é preciso procurar.

O fotojornalista do comício de Trump conta que nem viu a fotografia icônica que tirou. Transmitidas direto da câmera para sua editora, as imagens chegam num turbilhão, como as cenas em vídeo daquele momento, em que quase nada se entende do que se desenrola diante das lentes. Alguém precisa pinçar esse único fotograma perfeito, um trabalho, claro, menos poético do que as cenas dos franceses dos primórdios da fotografia, com a diferença também que grande parte dos registros deles eram encenados mesmo, coreografados para atingir esse efeito.

Esse gesto de pescar o fotograma ideal numa correnteza de imagens lembra a operação do inglês Eadweard Muybridge, nome central dos estudos do movimento na fotografia e precursor do cinema. Suas imagens de cavalos a galope, homens dando piruetas, bailarinas dançando, entre outras cenas em alta velocidade, fascinaram artistas que até então não tinham à disposição a visão do corpo em movimento em tamanha nitidez.

No decorrer da história, essas imagens de Muybridge ganharam status de arte e informaram o trabalho de pintores do calibre de Francis Bacon. No fotojornalismo, essas duas imagens de agora, de Medina e Trump, também foram alçadas à categoria máxima do ofício por se desprender do frenesi da ordem do dia e entrar para a história. São exceções que desviam da ordem, saem do esquecimento para entrar na memória como registro incontornável do fato.

O ponto, para além do magnetismo plástico da imagem, é seu caráter físico, impresso. Por mais que a circulação desses flagras tenha se dado em maior frequência pelas telas do celular, sabemos do poder que eles têm quando impressos, haja vista as primeiras páginas dos jornais e a capa da revista Time. É algo que só é possível com imagens desse calibre, a imagem-ícone, a imagem que fala pelo fato —algo que só grandes fotógrafos souberam encenar ou algo que só máquinas ultrapotentes hoje produzem em grande parte pelo acaso, mas alguém precisa notar.

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