Em tempos de reforma tributária do consumo, seguimos aguardando o pacote da reforma tributária da renda, dentro da qual se insere a discussão sobre a atual isenção do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) na distribuição de lucros e dividendos.
Enquanto isso, uma reforma silenciosa se opera via autuações fiscais e contencioso envolvendo exatamente o tema dos dividendos nas chamadas "pejotizações", numa arbitrária cruzada fiscal que procura corrigir a alegada sub-tributação da renda, naquele movimento bem identificado pela ex-secretário da Receita Federal do Brasil, dr. Everardo Maciel, onde a pretexto de se proteger o trabalhador dito hipossuficiente (o sócio da "pejota"), pune-se exatamente este, mediante autos de infração que procuram desqualificar a pessoa jurídica da qual é sócio, sob acusação de fraude ao contrato de trabalho.
É claro que há uma diversidade de situações envolvendo precarização de contratos de trabalho, mas não é disso que tratamos aqui, senão da programática orientação fazendária que insiste na recusa aos atuais meios de organização do trabalho.
Esse movimento tem início na década de 2.000, primeiramente para combater terceirização de atividades-fim, e aos poucos foi se estendendo para todo modo de organização de serviços prestados com pessoalidade por meio de pessoa jurídica.
Assim é que, com a intenção de proteger as fontes de custeio da previdência social, a autoridade fazendária, voltando-se contra as empresas tomadoras, passou a desconsiderar as "pejotas" prestadoras para imputar vínculo trabalhista entre os sócios "pejotas" e a empresa tomadora dos serviços, exigindo desta as contribuições previdenciárias devidas.
Num segundo momento, as autuações previdenciárias lavradas contra as empresas tomadoras passaram a cumular-se, também, com autuações de IRPF contra as próprias pessoas físicas "pejotas", imputando-lhes a infração de omissão rendimentos decorrentes do trabalho assalariado, sujeitos à tabela progressiva.
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A contraface dessa moeda seria, do mesmo modo, reconhecer as verbas trabalhistas e a proteção previdenciária a essas mesmas pessoas físicas autuadas pela autoridade fiscal.
Utopia à parte, o que se tem é a desconsideração dos rendimentos isentos de dividendos para submetê-los à tabela progressiva, muitas vezes sob a lógica que permeava as autuações na década de 2.000, mediante imputação genérica de vínculo trabalhista a partir da chamada subordinação jurídica, com base nos deveres usualmente previstos nos próprios contratos de prestação de serviços firmado entre as partes.
Aquela proteção contra a erosão da base previdenciária ganha então novos capítulos, de modo que as autuações fiscais rapidamente se estenderam para as atividades intelectuais (personalíssimas ou não), inclusive de natureza científica, artística ou cultural, afetando desportistas, artistas, apresentadores de rádio e televisão, altos executivos (inclusive estatutários), e por aí vai.
Isso tudo, mesmo após a veiculação do art. 129 da Lei nº 11.196/05 (Lei do Bem), dispositivo cuja constitucionalidade foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal na ADC 66/DF, quando então se assegurou a "ampla liberdade às empresas para definir suas escolhas organizacionais e os modelos de negócio com vistas a assegurar sua competitividade e subsistência."
Antes disso, aliás, o STF já havia reconhecido a possibilidade de terceirização da atividade-fim no julgamento do TEMA 725 e da ADPF 324, afirmando que "a Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a terceirização."
Inclusive, por meio da reforma trabalhista promovida pela Lei nº 13.467/17, restou valorizada a livre pactuação entre as partes, quando se estiver diante de "empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social" (§ único, do art. 444, da CLT).
Surge então o conceito de trabalhador hiper suficiente, talhado pelo próprio STF, segundo o qual: "se estivéssemos diante de trabalhadores hipossuficientes, em que a contratação como pessoa jurídica fosse uma forma, por exemplo, de frustrar o recebimento do fundo de garantia por tempo de serviço ou alguma outra verba, aí acho que uma tutela protetiva do Estado poderia justificar-se. (...) Professores, artistas, locutores são frequentemente contratados assim, e não são hipossuficientes. São opções permitidas pela legislação." (Rcl. nº 47.843/BA, Tribunal Pleno, 08/2/2022).
Diversas outras reclamações constitucionais têm sido julgadas pelo STF desde então, sempre reconhecendo a possibilidade de partes hiper suficientes auto-organizarem seus modelos de negócios e estabelecerem a prestação de serviços por outros meios que não unicamente o vínculo celetista, sem que se cogite em fraude ao contrato de trabalho.
Por fim, mais recentemente, dando início a um novo capítulo, a 1ª Turma do STF, ao afastar o vínculo trabalhista na Rcl. 67.348/RJ, passou a criticar a iniciativa de pessoas físicas "pejotas" hiper suficientes que, após o encerramento do vínculo civil, buscam a Justiça do Trabalho para pedir o vínculo trabalhista, pretendendo um regime duplamente bonificado de bônus sem ônus, cogitando a Suprema Corte, então, a possibilidade de cobrança de todos os encargos tributários decorrentes da pessoa física.
Pode ser um caminho, que depende da postura das partes.
O que não se pode admitir é a insistência fazendária em recusar a autonomia da vontade nas relações entre partes hiper suficientes, também buscando regime de bônus sem ônus (proteção previdenciária da pessoa física autuada), retroalimentando o dilema da "pejotização", num contencioso de processos sem fim.