Resquícios do milho cultivado no norte de Minas Gerais entre 1.000 anos e 600 anos atrás indicam que os indígenas brasileiros daquela época tinham preservado formas extremamente antigas da planta, não muito diferentes das que existiam vários milhares de anos antes, quando esse cereal começou a ser domesticado no México.
Essa forma ancestral do milho, que convivia com variantes desenvolvidas posteriormente, era caracterizada por espigas magrinhas, com menos de oito grãos de milho por fileira. Em diversos aspectos, elas ainda lembravam o teosinto, ancestral selvagem da planta.
A análise dos grãos e sabugos, que saiu na última quarta (4) na revista especializada Science Advances, traz novas pistas sobre a participação dos povos pré-colombianos do Brasil no desenvolvimento da agricultura nas Américas, com a participação deles em redes de trocas que atravessavam o continente e a capacidade de preservar variedades muito distintas entre si para o cultivo.
O trabalho é assinado por Flaviane Malaquias Costa, do Departamento de Genética da USP de Piracicaba, e Fabio de Oliveira Freitas, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, além de outros colaboradores.
Ao longo das últimas décadas, Freitas já assinou diversos estudos sobre as plantas cultivadas séculos atrás no vale do Peruaçu (MG), cujos resquícios muitas vezes são encontrados nas cavernas da região. Entre eles está a chamada lapa do Boquete, abrigo rochoso de onde vieram as amostras do novo estudo.
A pesquisa recém-publicada dá mais peso à ideia de que o milho passou por um processo que os especialistas chamam de domesticação estratificada (por etapas). Segundo essa visão, depois de uma primeira fase de domesticação do teosinto, o ancestral selvagem, no México, por volta de 9.000 anos atrás, formas iniciais do cultivo teriam chegado à região amazônica (especialmente em sua porção sudoeste) uns 7.000 anos antes do presente, começando a se espalhar pela América do Sul.
Os padrões genéticos chegaram ao Peruaçu e foram contemporâneos em algum momento dessa história. Mas o que é realmente incrível é ainda aparecer esse padrão morfológico mais primitivo naquela região
Depois disso, ainda no território mexicano, teria ocorrido uma nova fase de melhoramento da planta por meio do cruzamento com outra variedade de teosinto. O processo teria aumentado o rendimento do cereal e levado à difusão de novas raças de milho pelo continente.
Ocorre que, segundo o estudo, ambos os padrões aparecem na região do Peruaçu, embora a variante mais antiga apareça em menos de 10% das amostras. Mesmo no caso delas, já não se trata do teosinto propriamente dito. "Os grãos do teosinto são muito duros e ‘estouram’ no fogo, como os de milho de pipoca", afirmou Flaviane Costa à Folha. "No caso do Peruaçu, os grãos encontrados são do tipo farináceo", tendo, portanto, um padrão diferente.
Nas cavernas do norte de Minas, os vestígios de milho domesticado começam a aparecer por volta de 1.500 anos atrás, e a variante mais antiga da planta aparece tanto nessa fase mais antiga quanto na mais recente, pouco antes da chegada dos europeus ao Brasil. Já a forma "melhorada" do cereal, só aparece nas datas mais recentes, diz Fabio Freitas.
"Os padrões genéticos chegaram ao Peruaçu e foram contemporâneos em algum momento dessa história. Mas o que é realmente incrível é ainda aparecer esse padrão morfológico mais primitivo naquela região, tão distante do centro de origem, passando por tantos biomas distintos entre o México, a região amazônica e o Peruaçu, e ter persistido por tanto tempo", destaca ele.
A questão é saber, claro, qual foi o processo que permitiu a preservação do milho primitivo por tanto tempo e tão longe de suas origens mexicanas, ainda mais considerando que, em tese, ele seria menos produtivo que as formas posteriores da planta. "Realmente são questões muito intrigantes, e por enquanto não é fácil respondê-las", diz Costa.
"Como apenas entre 5% e 10% das amostras têm esse padrão primitivo, isso indica que, de tempos em tempos, apareciam plantas com essa morfologia ‘primitiva’ por meio da recombinação genética, com o cruzamento de indivíduos dessa população de milho. Ou seja, havia ali uma diversidade genética relativamente boa", analisa Freitas.
"O que vejo nas populações indígenas atuais é que elas gostam de ter muitas variedades das plantas cultivadas, mesmo quando algumas delas são muito produtivas e outras não produzem muito, seja porque gostam da cor, do formato, do sabor, do tipo de uso", explica ele.
"Mas principalmente porque sabem que, em um ano no qual o clima ou as pragas atrapalham, alguma variedade sempre vai dar alguma coisa. Às vezes, aquela pouco produtiva é mais resistente ao estresse ambiental e produz nessas condições desfavoráveis, enquanto uma bem produtiva pode sentir mais."
Por fim, não se podem descartar totalmente aspectos menos práticos. Costa lembra que muitas das plantas agrícolas achadas nas cavernas do Peruaçu estão associadas a sepultamentos de pessoas e, portanto, podem ter algum significado ritual também.