"Você deve ter notado que eu sempre ponho a mesma frase de Samuel Beckett no começo de meus livros", afirma o italiano Sandro Veronesi. Sim, está lá, de novo na epígrafe de seu lançamento "Setembro Negro". "Não posso continuar. Continuarei."
"É exatamente esse o tipo de heroísmo que me atrai", diz ele, durante esta entrevista. "É algo que todo mundo precisa enfrentar. Aquele momento em que você não consegue continuar, mas precisa. Quanto mais comum é o ser humano diante desse momento trágico, mais interesse eu tenho no seu comportamento."
É um belo jeito de introduzir um projeto literário que seduz cada vez mais leitores brasileiros — em quantidade que deve aumentar bem quando Veronesi vier ao Brasil como convidado da Festa Literária Internacional de Paraty.
A Flip, que vai de 30 de julho a 3 de agosto no litoral fluminense, está só agora começando a divulgar o elenco da próxima edição —a única já conhecida é a mexicana Dahlia de la Cerda, que acaba de ter seu primeiro livro editado pela DBA. Veronesi, por outro lado, já tem um público cativo por aqui.
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Seu romance "O Colibri", lançado há um ano pela Autêntica Contemporânea, virou o mais vendido do selo em 2024, ultrapassando a marca de 20 mil exemplares, bastante expressiva para o mercado de literatura adulta no Brasil.
Foi um fenômeno daqueles difíceis de explicar —o romance foi cochichado de boca a boca, adotado em diversos clubes de leitura. E Veronesi comenta que sente que seus livros são mais bem compreendidos em países em que as relações familiares são mais estreitas, como os latinos.
Faz sentido. O livro cobre gerações da família de Marco Carrera, um homem cuja banalidade é reiterada continuamente. Mas isso não quer dizer que a trama não seja carregada de drama e suspense.
O talento de Veronesi, já confirmado duas vezes pelo prêmio mais importante da Itália, o Strega, parece ser extrair tensão do cotidiano e enxergar o que há de mais épico nas vidas comuns.
"Pessoas especiais costumam vir junto com destinos especiais", diz o escritor de 66 anos. "Quando pessoas normais, que realmente não esperam nada grandioso de suas vidas, são convocadas a encarar o imenso heroísmo de aguentar algo que é insuportável —esses, para mim, são os heróis mais irresistíveis."
A tendência se comprova em "Setembro Negro", que a Autêntica publica no fim de maio, a tempo da Flip —a editora tem planos de relançar ainda "Caos Calmo", seu primeiro vencedor do Strega, já editado há cerca de duas décadas pela Rocco.
"Não sou difícil de imaginar porque realmente sou um homem comum", diz o protagonista do livro mais recente, na cena em que se detém pela primeira vez na descrição de sua aparência. "Eu poderia ser aquele sentado ao lado de vocês no ônibus, ou o garçom que lhes serve a pizza, ou seu farmacêutico, ou o carteiro, ou o padre que toma sua confissão, ou o motorista que manda vocês para aquele lugar junto ao semáforo. Imaginem um deles que, para mim, está tudo bem."
Esse homem, Luigi, escreve para contar um episódio que rachou sua vida em antes e depois quando ele tinha 12 anos, envolvendo o amor desvanecente de seus pais e seu amor germinante por uma menina —são lembranças chuviscadas no litoral italiano, e os leitores se sentem em ambiente similar ao de Elena Ferrante ou Domenico Starnone.
"Recordar-se do passado é importante", diz o narrador, "e se se tratava de um passado feito de pequenas coisas, como foi para mim, também essas pequenas coisas se tornam importantes".
É uma das sentenças-chave de todo o projeto de Veronesi. Mas algo que o autor faz questão de frisar é que ele fala de vidas normais, só que não da sua vida.
"Eu não escrevo sobre pessoas que leem muito, por exemplo, ou que escrevem", diz ele. "Esses personagens podem ter jogado tênis comigo, podem ter ido à escola comigo, mas normalmente têm uma experiência mais direta das coisas. Não são pessoas criadoras."
É fundamental para o italiano explorar vidas diferentes da sua, indo contra a corrente geral da autoficção. "Quero trabalhar essa diferença. O mais interessante para mim é o que eu não sou."
A dona da editora Autêntica, Rejane Dias, comenta que o que mais a alegra no sucesso de "O Colibri" no Brasil é ver que "uma narrativa bem contada, imaginativa, que não está respondendo aos temas políticos que estão em pauta, pode dar muito certo".
Segundo ela, o selo Autêntica Contemporânea, que existe há três anos numa editora antes acostumada a trabalhar autores mortos, quer publicar livros que sejam bons de ler, sem maiores restrições —o que não é o caso de boa parte da autoficção que se vê por aí.
"Estou meio de saco cheio dessa literatura metalinguística, autorreferencial, com temas quase militantes", diz, citando exceções como a australiana Deborah Levy, publicada pela editora. "Se for bom de ler, tudo bem, mas tem muita coisa chata para caramba."
É algo que ecoa no discurso de seu autor. "Eu teria vergonha de confessar numa entrevista que escrevi um romance em que o protagonista, Sandro Veronesi, se perdeu no supermercado só porque eu me perdi num supermercado", afirma Veronesi. "Sou muito mais inspirado por meus sonhos que pela realidade que vivo."
É quando o italiano se empolga e se aproxima da câmera. "Eu quero viver sem roubar os sabores da minha vida para pôr tudo na literatura. Eu amo minha vida, amo a literatura e quero amar as duas, não transportar uma para a outra. Quero viver os dois mundos, o mundo real e o inventado."