Talvez o jeito mais fácil de explicar o livro "Crianças Escondidas" seja dizer que ele é uma espécie de "Onde Está Wally?". Só que, em vez de o mesmo personagem se camuflar pelas ilustrações, a obra do italiano Franco Matticchio oculta um punhado de meninos e meninas.
Funciona assim. Na página da esquerda, lemos os nomes das tais crianças escondidas. Na da direita, onde vemos a imagem, esses garotos se misturam à paisagem. O leitor logo entende o jogo de esconde-esconde e rapidamente começa a procurar os personagens, vasculhando cada canto, sombra e esconderijo do desenho.
Se fosse só isso, bastaria acrescentar que a publicação foi premiada na Feira do Livro Infantil de Bolonha do ano passado, um dos principais eventos mundiais da literatura infantojuvenil, e que ela acaba de chegar ao Brasil pela editora Nanabooks. Ponto final e seguiríamos o baile.
Mas não é bem assim. "Crianças Escondidas" oculta muito mais do que somente uma brincadeira de gato e rato.
Uma das primeiras pistas disso é que não é tão difícil encontrar as tais crianças escondidas. Elas não tomaram o mesmo chá de sumiço do Wally e podem ser achadas em poucos segundos. Logo vemos um par de pernas atrás de um sobretudo, uma cabeça dentro de um balde, um menino no reflexo da poça d'água, pés atrás da cortina, do balanço, do galho. Muitas vezes, até de forma escancarada.
Mas, se a ideia não é apenas construir um jogo para encontrar personagens, qual é a proposta afinal? Não existem respostas definitivas, como costuma ocorrer nos bons livros. Estamos no campo da ambiguidade, não do didatismo. Mas há alguns fios que podemos ir puxando.
Outra pista aparece nos versos que o autor espalha pela narrativa. "A criança escondida/ nunca fica em seu posto/ livre e decomposta/ sempre faz o oposto/ do que lhe é imposto", escreve.
No fundo, o que Matticchio faz é criar uma poética da infância. No livro, é ela que quebra o hábito, rompe com a normalidade, gera desfamiliarização, muda a nossa maneira de enxergar as coisas, cria novas imagens, desequilibra o status quo, gera farpas, rupturas, choques —assim como faz (ou deveria fazer) a poesia.
A meninice em "Crianças Escondidas" é o elemento transformador. Quando você percebe a infância na cena, o mundo sai do piloto automático, ganha tons fantásticos, mergulha na brincadeira, recebe outros significados. São os corpos pequenos que trazem o inesperado. Parafraseando Adélia Prado, são eles que fazem pedras não serem somente pedras. E, com isso, jogam uma pergunta: o que não estamos enxergando ao nosso redor?
A partir daí, nasce outra leitura, ainda mais potente. E se nós não estivermos enxergando justamente as crianças? E se as pedras, nesse caso, forem realmente pedras? É então que a narrativa visual se transforma num manifesto contra as invisibilidades da infância e faz outro questionamento: quando foi a última vez que você enxergou de verdade uma criança? Mas criança mesmo, com voz, rosto, direitos, vontades, opiniões, filosofias.
Quando foi a última vez que perguntamos a opinião delas e ouvimos suas respostas sem condescendência? Quando levamos em conta seus interesses sem tratá-las como café com leite? Quando consultamos suas vontades em temas como economia, política, artes, urbanismo?
Onde está a infância quando Trump prende imigrantes nos Estados Unidos? Quando Israel bombardeia Gaza? Quando o Banco Central aumenta a taxa de juros? Quando Moçambique entra em convulsão social? Quando campos de refugiados se multiplicam e são atacados? Quando jogadores sofrem racismo em estádios? Quando a Ucrânia está há três anos sendo invadida? Quando os casos de latrocínio aumentam em São Paulo?
Porque as crianças estão aí. Sempre estão aí. Basta abrir os olhos para vê-las. Não é tão difícil.