Primeira rede de criptografia quântica do país deve unir cinco instituições de pesquisa

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Sobre a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, uma faixa contínua de laser verde percorre 6,8 quilômetros até encontrar uma janela no terraço do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no bairro carioca da Urca. A fonte da luz está localizada numa sala no alto do prédio do Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense (UFF), na vizinha Niterói, do outro lado da baía. O laser é a parte mais visível do trabalho de implementação da primeira rede metropolitana experimental de comunicação baseada em propriedades da mecânica quântica do Brasil, a Rio Quântica.

Além da conexão aérea propiciada pelo feixe de fótons entre essas duas instituições, a rede interliga por cabos de fibra óptica a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o CBPF e, em breve, o Instituto Militar de Engenharia (IME). Em implementação desde 2021, a rede está em fase de testes e instrumentalização e pretende utilizar a chamada criptografia quântica para transmitir dados de forma segura.

Na criptografia tradicional, em uso em celulares e computadores de todo o mundo, as informações são codificadas na forma de bits clássicos (uma sequência de 0 e 1) e transmitidas no mesmo canal que as chaves digitais empregadas para decodificá-las. Um bit é a menor unidade de informação que pode ser armazenada e transmitida. Pode representar apenas um desses dois valores possíveis: 0 ou 1.

A comunicação quântica trabalha com um análogo do bit clássico, o qubit, que pode assumir concomitantemente dois valores: ser 0 e 1 ao mesmo tempo. Essa propriedade, baseada no fenômeno quântico denominado superposição de estados, amplia as possibilidades da criptografia quântica e a torna quase inviolável.

Um tipo particular de superposição é o emaranhamento, um recurso adicional utilizado na segurança de redes quânticas de comunicação. Por isso, essas redes são vistas como fundamentais para garantir a segurança de uma série de tarefas no futuro próximo, como a simples autenticação num aplicativo de banco ou mesmo a troca de mensagens sensíveis para fins de segurança nacional.

"A criptografia quântica não é usada para codificar um texto, mas, sim, para criar e transmitir as chaves que devem ser empregadas para que as mensagens possam ser lidas em segurança", comenta o físico Antonio Zelaquett Khoury, coordenador da Rio Quântica. A montagem da rede é uma operação sofisticada. Até o momento, os primeiros testes asseguram que pelo menos alguns canais de comunicação dentro da rede estão funcionando de forma satisfatória.

A UFRJ, a PUC-Rio e o CBPF já estavam conectados por cabos de fibra óptica graças a um investimento feito anos atrás pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Como havia fibras ociosas dentro dessa rede, elas foram cedidas para uso da Rio Quântica.

Dois pares de fibras partem da PUC-Rio, um para o CBPF e o outro para a UFRJ. O canal com o CBPF funciona bem, mas o da UFRJ apresenta sinal fraco e precisará de correção. A ligação entre o CBPF e o IME, última instituição a entrar no projeto, está em fase final de implementação. A distância entre ambas é de apenas 800 metros. Além da ligação por fibra óptica, está prevista para ser instalada ainda neste ano uma conexão extra, via laser pelo ar, entre o CBPF e o IME.

Na operação montada pela Rio Quântica, a parte que vem se mostrando mais desafiadora é o vínculo pelo ar. O feixe de laser emitido na UFF precisa ser captado pelo receptor óptico situado numa sala construída no topo do CBPF exclusivamente para abrigar o equipamento. Qualquer parcela de luz perdida pode comprometer a integridade da informação transmitida. Por ora, as partículas de luz verde ainda chegam excessivamente dispersas ao terraço do CBPF, falha que deverá ser corrigida até o fim de 2024.

"Enlaces de longa distância podem atrapalhar muito a parte quântica. Até mesmo leves distorções ou trepidações nos terraços desalinham o feixe de luz, sem falar no efeito de fatores ambientais que atenuam o sinal, como calor, névoa e chuva", comenta o tenente-coronel Vítor Andrezo, engenheiro de comunicações do IME e especialista em óptica no espaço livre. Os sistemas quânticos são muito frágeis e qualquer influência do meio ambiente pode interferir em seu funcionamento.

Uma vez que a infraestrutura esteja montada, com os devidos canais funcionando, o próximo passo é a implementação de um protocolo de criptografia quântica entre as instituições para colocar em prática o objetivo fundamental do projeto: a geração a distância de chaves criptográficas aleatórias.

"O objetivo é que duas estações de pesquisa, nomeadas como Alice e Bob, compartilhem uma chave criptográfica entre si que codifica e decodifica mensagens. Uma vez utilizada, a chave precisa ser descartada", detalha Guilherme Temporão, do departamento de Engenharia Elétrica da PUC-Rio, integrante da rede.

O protocolo adotado pela Rede Rio Quântica utiliza um terceiro agente, denominado Charlie, que pode ser confiável ou não e precisa estar posicionado entre as estações Alice e Bob, formando uma espécie de circuito.

A primeira tentativa de implementação do protocolo em condições experimentais será feita entre a PUC-Rio, no papel de Charlie, e a UFRJ e o CBPF, que serão Alice e Bob, respectivamente. A intenção do grupo é ir mudando os papéis de cada instituição envolvida na rede, de forma a testar novas configurações.

"No protocolo, Charlie é responsável pelo envio de fótons em branco, sem nenhuma informação, que serão modificados por Alice e Bob e reenviados de volta para Charlie edetectados", comenta Temporão.

A Rio Quântica recebeu cerca de R$ 3 milhões em 2022 de uma parceria da Fapesp com o MCTI para sua implementação inicial. No ano passado, ganhou outros R$ 3 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) disponibilizou ainda R$ 23 milhões para o CBPF, dos quais R$ 1 milhão foi destinado para as operações da rede e R$ 22 milhões para a construção do Laboratório de Tecnologias Quânticas no térreo do centro. O novo espaço deverá ser concluído até 2025.

Segundo o físico Ivan Oliveira, coordenador do projeto do Laboratório de Tecnologias Quânticas do CBPF e membro da Rio Quântica, o novo espaço de pesquisa tem como objetivo fabricar materiais úteis para o processo de computação quântica.

"Existem diferentes candidatos a hardware para fazer esse tipo de computação, e o laboratório irá construir protótipos de chips quânticos e outros componentes eletrônicos", explica Oliveira. "São dispositivos que precisam funcionar a temperaturas muito baixas, perto do zero absoluto, cerca de 273 graus Celsius negativos. Teremos refrigeradores para abrigar os materiais que serão construídos."

Outras duas redes quânticas metropolitanas estão sendo gestadas no Brasil, em estágio ainda mais preliminar que a do Rio de Janeiro, com financiamento do CNPq. A Rede Quântica Recife está instalando uma conexão de fibras ópticas entre as universidades federais de Pernambuco (UFPE) e Rural de Pernambuco (UFRPE). A distância entre as instituições é de cerca de 5 km. Um atraso na liberação dos recursos, no entanto, vem impactando o andamento do projeto.

O segundo projeto envolve a constituição de uma rede de aproximadamente 4 km com três pontos em São Carlos, no interior paulista. Os nós da rede são a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e o Centro de Pesquisas Avançadas Wernher von Braun, instituição privada local que atua na área de física e eletrônica.

"No momento, estamos analisando a viabilidade de conectar por cabo óptico a UFSCar à USP e esta à sede do centro von Braun", diz o físico Celso Villas-Bôas, da USFCar, coordenador do projeto. A rede quântica na cidade paulista pretende estar ativa dentro de dois anos.

Redes no exterior

Há duas décadas começou a se tornar realidade a ideia de implementar redes metropolitanas para pesquisar as potencialidades da comunicação quântica. A primeira iniciativa nesse sentido surgiu em 2003 nos Estados Unidos e funcionou por quatro anos. Era uma rede de criptografia quântica que usava fibras ópticas para interligar a Universidade de Boston à empresa de tecnologia BBN e à Universidade Harvard, ambas em Cambridge, cidade vizinha a Boston, no estado norte-americano de Massachusetts.

Desde então, outras iniciativas desse tipo foram surgindo mundo afora.

Em maio deste ano, três grupos independentes de pesquisa, baseados na China, Estados Unidos e Europa, divulgaram praticamente ao mesmo tempo que tinham obtido sucesso em transmitir fótons emaranhados entre diferentes pontos de redes em áreas urbanas conectadas por fibra óptica.

Esse seria o passo inicial para se criar uma espécie de internet quântica. No emaranhamento, duas ou mais partículas (podem ser fótons, elétrons ou átomos) se comportam como se fossem uma entidade única, entrelaçada, ainda que estejam separadas por qualquer distância. O resultado de medições feitas em uma partícula está correlacionado com o valor obtido para a outra. Essa propriedade pode ser usada para transmitir informação.

O país que mais investe em comunicação quântica atualmente é a China, tendo gasto nesse nascente setor mais de US$ 15 bilhões, mais do que a soma de todos os outros concorrentes. O gigante asiático já implementou algumas redes de criptografia quântica. A maior de todas integra atualmente quatro áreas metropolitanas por fibras ópticas –Pequim, Jinan, Hefei e Xangai– e conta com dois satélites com tecnologias quânticas lançados em órbita, Micius e Jinan 1, que se comunicam com estações terrestres. No total, mais de 4,6 mil km estão contemplados dentro da rede.

A Rede Rio Quântica e seus congêneres em São Carlos e no Recife são os passos iniciais do país para montar sistemas de comunicação baseados em qubits.

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