Pedro Butcher e Lia Bahia: Apoio da Netflix à Cinemateca Brasileira ressalta desafios do setor

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Ao longo dos anos 1960, em uma série de textos, Paulo Emílio Salles Gomes desenvolveu um pensamento consistente e lúcido sobre a situação do cinema brasileiro, forjado por uma tradição importadora e uma produção local com dificuldades de se afirmar.

Em "O Dono do Mercado", publicado em 1961, afirma: "Com excessiva frequência, desde 1915, temos lutado contra fantasmas criados pela nossa imaginação ingênua de povo subdesenvolvido, ou contra as máscaras de uma realidade totalmente deformada pela nossa ignorância. É mais do que tempo de conhecermos a fisionomia exata da nossa adversidade".

Ou seja, há mais de 60 anos, Paulo Emílio passou o dever de casa. Para conseguirmos sair de "uma situação colonial", precisamos, antes de tudo, conhecer as estruturas e estratégias dos grupos hegemônicos do campo.

A expansão internacional dos grandes estúdios de Hollywood, que começaram a abrir seus escritórios no Brasil em 1915, recebeu um amplo apoio do governo americano sobretudo a partir dos anos 1920, por meio de relatórios que forneciam aos empresários informações preciosas.

Um estudo desses relatórios e das revistas da época evidencia as principais estratégias que contribuíram para tornar esses grupos hegemônicos —a ocupação do mercado, o controle da informação, a criação de barreiras de entrada, o lobby contra iniciativas regulatórias, e promessas de parcerias para fortalecer a produção nacional, desde que sob suas condições.

O apoio governamental à expansão dos grandes estúdios se deu de forma indireta, por meio de relatórios produzidos pelos consulados dos Estados Unidos, encomendados pelo Departamento de Estado e encaminhados à Motion Pictures Producers and Distributors of America, representante internacional dos interesses dos grandes estúdios. Ou seja, desde muito cedo, a expansão do cinema hollywoodiano contou com uma política de Estado, independente dos governos que passavam pela Casa Branca.

Naquele momento, a força dos filmes americanos no mercado brasileiro não era monitorada pela aferição de público e renda, mas pela quantidade de filmes e presença nas salas. Ou seja, antes dos resultados, havia uma preocupação de garantir a ocupação.

Qualquer avanço de outras cinematografias —como a alemã, no fim dos anos 1920— era apontada como ameaça. Primeira lição das estratégias da hegemonia —ocupar espaços, antes de tudo. Paralelamente, movimentos legislativos de caráter regulatório eram combatidos e inibidos, oficial ou extraoficialmente.

A estratégia da Netflix de apoiar a Cinemateca Brasileira nada mais é do que um movimento de ocupação de espaços negligenciados. Os campos da preservação, formação e difusão, representados pela Cinemateca, foram ao longo de décadas deixados à margem das políticas públicas e pelo próprio setor. Esse é um debate vivo que tem ganhado força em alguns fóruns de discussão. As plataformas de streaming estão atentas a esses movimentos e miraram nesses campos.

Não é um acaso que essa iniciativa ocorra em um momento em que se busca um avanço da regulação do setor de streaming no Brasil. A argumentação usada pela Netflix para justificar o investimento em preservação contém um recado para o setor, pois vem acompanhada pela ênfase de que a Netflix não vive só de originais e que a maior parte de seu conteúdo é licenciado.

No entanto, são os originais que recebem mais investimento e proeminência e que, em geral, são objetos de contratos que transformam as produtoras independentes brasileiras em prestadoras de serviço, sem acesso à propriedade intelectual da obra e aos dados gerados pela sua exibição.

Precisamos de investimentos urgentes na preservação. Mas é preciso ter um olho no peixe e outro no gato. As grandes plataformas ocupam uma posição privilegiada que vem construindo a formação do olhar, criando hábitos de consumo e construindo uma nova hegemonia. Permitir que a Netflix se aproxime de instituições de interesse público contribui para alguns passos na direção de uma cooptação do setor em um momento de disputa política.

Sabemos que esse governo tem muitas outras preocupações e enfrenta limitações no Congresso, mas também é uma realidade que não entendeu o papel estratégico da cultura, e particularmente do setor audiovisual, para o fortalecimento social, simbólico, econômico e civil do Brasil —um movimento colocado em prática nos mandados de Lula 1 e 2.

O atual olhar economicista, que parece incontornável, é incapaz de compreender as especificidades da cadeia de valores do audiovisual e não enxerga a importância da cultura e da economia criativa.

O próprio setor audiovisual tem seu quinhão de responsabilidade nesse processo. Depois de um rápido período de união após a destruição promovida pelo governo Bolsonaro, dividiu-se e enfraqueceu sua capacidade de articulação.

Assim como os grupos de decisão do governo observam o "povo da cultura" e, principalmente, o "povo do cinema" como um grupo privilegiado e reclamão, o setor audiovisual se divide, em uma simplificação grosseira, entre "industrialistas" e "culturalistas", incapazes de entender que, "em cinema, de forma mais clara que em outros terrenos da atividade humana, há uma solidariedade total entre as tarefas mais prosaicas e as construções mais finas", voltando a Paulo Emilio.

Lúcido e implacável, Paulo Emílio demonstrou como a situação colonial e importadora forjou nos produtores brasileiros uma mentalidade corporativa: "Não sentiam até que ponto a produção, distribuição e exibição de filmes são atividades solidárias". O mundo mudou, o cinema se desdobrou em vários outros formatos audiovisuais, mas determinados aspectos seguem parecidos.

Os grupos hegemônicos recorrem às mesmas táticas, enquanto o pensamento do setor audiovisual e do poder público no Brasil caminharam pouco em uma compreensão mais profunda das complexidades e da interconexão entre os elos do campo audiovisual.

Precisamos de um giro conceitual e prático protagonizado pelo Estado brasileiro, pelos trabalhadores do audiovisual e pelos pesquisadores. Apenas remendos e revisões não vão consolidar a soberania imaginativa de que o Brasil precisa e merece.

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