Para Ludhmila Abrahão Hajjar, ser mulher não é a parte mais interessante de sua carreira. Para a cardiologista e mais jovem professora titular de emergências da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), gênero é uma parte da equação, mas está longe de ser o todo. Ela é a primeira mulher a ocupar o cargo, que assumiu no ano passado, e vencedora do Prêmio Todas na categoria Saúde.
Conheça o Prêmio Todas
Distinção, idealizada pela iniciativa Todas, premia mulheres em oito áreas do conhecimento, divididas na categorias Ciência e Tecnologia, Cultura, Economia, Educação, Energia Limpa, Esporte, Política Pública e Saúde. Também foi escolhida a personalidade do ano. Ganhadoras foram eleitas a partir de júri composto por jornalistas, empresárias, ativistas, acadêmicas e membros do terceiro setor.
"Hoje estamos discutindo pautas inclusivas em todas as áreas", diz, "e a medicina não pode ficar para trás." Segundo Hajjar, a formação médica hoje nem sequer permite que estereótipos de gênero se façam presentes na hora de pensar no tratamento de um paciente. "A gente tem que ver uma pessoa."
A formação —tópico espinhoso entre médicos hoje— norteia o trabalho de Hajjar. Além de conselheira no CNE (Conselho Nacional de Educação), ela cuida de cerca de cem residentes na USP.
"Vivemos uma crise de formação médica no país, muito devido à abertura indiscriminada, e até irresponsável, de escolas de medicina sem qualidade." Ela lista alguns dos problemas dessas escolas, como a falta de hospital para o ensino, a falta de professores qualificados e a ausência de integração com as necessidades da sociedade.
Vivemos uma crise de formação médica no país, muito devido à abertura indiscriminada, e até irresponsável, de escolas de medicina sem qualidade
O Brasil é o segundo país com mais escolas médicas, atrás apenas da Índia. Hoje são 400, um salto em relação a 1990, quando havia 78. O número de profissionais atuando também cresceu —de 131.278, em 1990, para 545.767, em 2024. Segundo dados do CFM (Conselho Federal de Medicina), se formam 35 mil novos médicos por ano.
Isso culmina em centenas de profissionais se graduando todos os anos, "sem que a gente reconheça neles qualidade, vocação, talento", diz ela.
Hajjar afirma que a aprovação de tantos cursos de qualidade questionável parecia estar associada à falta de médicos para atuar nas áreas remotas do Brasil. Mas, na prática, a concentração de profissionais no Sul e no Sudeste continua.
"Mas não é abrindo escola médica deliberadamente e sem critério de qualidade que nós vamos conseguir diminuir essas heterogeneidades e melhorar a qualidade do cuidado", diz Hajjar.
O caminho, diz ela, envolve "fechar o cerco". Ela advoga por mais avaliações contínuas das escolas —e dos alunos— ao longo do curso de seis anos. "Não é incomum as instituições de ensino superior correrem para atender um edital e, aparentemente, naquele momento, ter toda a estrutura. Depois, ela ganha autorização das vagas e perde toda a estrutura."
Além de ver na medicina um tipo de vocação, ela diz acreditar que a profissão exige dedicação total.
"Não tem horário, não tem dia de semana, não tem o momento que você escolhe, é simplesmente uma vida dedicada, 24 horas, sete dias da semana", diz. "Não dá para fazer como um bico, como um terço do seu dia. Exige dedicação, estudo continuado."
A médica, que entrou na UNB (Universidade de Brasília) aos 17 anos e se formou aos 23, só foi montar consultório aos 40. Hoje, sete anos depois, atende em um bairro rico de São Paulo, a Vila Nova Conceição, e coleciona celebridades como clientes. Ela fez cirurgias cardíacas no pai de Anitta e na mãe da ex-BBB Juliette.
Mas seu nome ganhou fama, mesmo, quando ela foi convidada a ocupar o cargo de ministra da Saúde no governo Jair Bolsonaro (2018 - 2022). Num troca-troca de ministros, ela foi cotada na saída de Eduardo Pazuello, mas recusou. Entrou Marcelo Queiroga, que perdeu a corrida para a prefeitura de João Pessoa neste ano.
"Naquele momento, qualquer médico no meu lugar iria conversar com quem quer que fosse presidente. A gente estava vivendo uma pandemia, tínhamos centenas morrendo a cada dia, falta de recursos, negacionismo, não havia medicamentos, leitos", diz. "Qualquer um que fosse chamado ia, pelo menos, considerar."
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E ela considerou. Hajjar foi até Brasília, mas recusou o convite. A proposta ia contra a medicina na qual ela diz acreditar, que é, afirma, baseada em evidências.
É o mesmo mote que guia críticas abertas que ela faz ao CFM (Conselho Federal de Medicina). "Nos últimos anos houve uma politização desnecessária, sem lugar, no CFM. Medicina não baseada em evidências passou a ser defendida", diz. "Leva a uma insegurança da população, tanto em termos do que esperar dos médicos, quanto em termos dos resultados, da eficiência dos tratamentos e diagnósticos." É, para ela, um equívoco da essência do órgão.
Durante a pandemia de Covid, o CFM defendeu o direito de os médicos receitarem a hidroxicloroquina para pacientes, apesar da falta de evidências científicas que indicassem aquele como um tratamento eficaz. Neste ano, o órgão defendeu a criminalização da assistolia fetal em gestações decorrentes de estupro, mesmo com a recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) para a interrupção de gravidezes avançadas.
A médica se afasta e se aproxima da política em diferentes medidas. Depois de recusar o ministério da Saúde sob Bolsonaro, ela integrou a equipe de transição do governo para o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e, neste ano, fez o plano de governo de Tabata Amaral na área da saúde, ao lado do patologista Paulo Saldiva.
Mas, segundo a médica, suas ambições não estão na política partidária. "Não passa pela minha cabeça o desejo de ocupar um cargo na política.". Ela quer, porém, "participar ativamente da transformação da saúde e educação no meu país".
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