Palmeiras podem dar pistas da interação milenar entre humanidade e natureza

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Quando Gonçalves Dias escreveu os primeiros versos de "Canção do Exílio", o poeta provavelmente ignorava a que espécie de palmeira se referia. A taxonomia dessas plantas não é, de fato, coisa simples para qualquer um. Até pouco tempo atrás, em grande parte dos casos, o genoma conhecido permitia identificar famílias (conjunto de gêneros) e gêneros (conjunto de espécies) de palmeiras, não espécies em si.

Embora as espécies de palmeiras apresentem distinções mais claras nos fenótipos (as características externas, os traços de um indivíduo), as diferenças no genótipo (a composição genética) são sutis. Foi só com o avanço mais recente das técnicas moleculares que algumas famílias e gêneros passaram a ser separados em espécies.

Gonçalves Dias, natural de Caxias, no Maranhão, tampouco deveria saber por que as palmeiras em questão estavam em sua terra. No Brasil, essas plantas estão espalhadas por toda parte. Cada região tem sua representante mais icônica: no Norte, o açaizeiro; no Sul, o butiazeiro; ao longo da costa, o coqueiro, e por aí vai. A história de como as espécies foram parar onde estão é um dos pontos de interesse da bióloga Cintia Freitas.

Assim como as palmeiras, Freitas disseminou suas raízes Brasil afora. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco, seu estado natal, fez doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em Manaus, e pós-doutorado em Goiás. Foi professora na Universidade Federal do Pampa, em Santa Maria, e hoje é pesquisadora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A andança pelo país foi proposital: ela desenvolveu projetos que a levassem ao maior número de biomas possível. Com exceção dos extremos terrestres, conhece todos os biomas das Américas.

Ao visitar cada bioma, a bióloga tratou de observar os cenários, refletindo sobre as intervenções que ocorreram ao longo da história local para que as paisagens resultassem daquele jeito. Um de seus objetivos é abordar um ponto que, segundo ela, é frequentemente esquecido pelos ecólogos: o ser humano teve e tem influência decisiva na distribuição de espécies de plantas pelo ambiente.

"A ecologia é uma ciência dura, que usa modelos matemáticos para ter poder preditivo sobre diversos temas", ela diz. "A ação humana, no entanto, é raramente considerada nesses modelos." A própria cientista assume que pensava assim quando, em suas pesquisas, trocou a Mata Atlântica pela Amazônia por querer explorar um bioma intocado pelo homem. "Mas qual homem?", questiona hoje.

A hipótese de Freitas é que as populações indígenas que habitaram o território brasileiro antes de 1500 cultivaram plantas em territórios próximos a seus assentamentos. O manejo que beneficiaria esses povos com recursos como alimentos ou materiais para a construção de abrigos e ferramentas, acabou por redesenhar a paisagem.

Trata-se de uma teoria de simples concepção, mas de difícil comprovação. Para produzir evidências, Freitas estuda a distribuição das palmeiras de butiá no Rio Grande do Sul. Graças às novas técnicas moleculares, ela detalha o genoma das espécies e cruza as informações com dados arqueológicos de assentamentos e rotas de migração dos povos originários, ancorando as mudanças genéticas no tempo geológico. É uma forma de entender concomitantemente a evolução das espécies e da paisagem.

Os resultados podem mudar um paradigma na ecologia, situando o ser humano como parte da natureza, e não mero observador. Um dos impactos mais importantes dessa mudança pode se dar na implantação de novas unidades de conservação, que atualmente não costumam levar em conta a intervenção humana nos modelos de manejo.

"Muitas leis regionais de conservação não consideram as relações da natureza com a população local —é o mito da natureza intocada", ela diz. "Precisamos de uma visão mais conectada à nossa ancestralidade, entendendo que o conhecimento dos povos originários teve impacto na abundância, na distribuição e na diversidade genética de espécies úteis."

Como as palmeiras de Gonçalves Dias, muitas das paisagens tidas como naturais são, muito provavelmente, resultado de milênios de interação entre a humanidade e o ambiente.

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Murilo Bomfim é jornalista.

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