"Serra Pelada", em cartaz no Teatro de Arena em São Paulo, sob a direção de Alexandre Dal Farra, é uma peça que ecoa a busca incessante pelo ouro — um ciclo vicioso que se desdobra em riqueza, bens materiais e, inevitavelmente, na efemeridade da perda. Dividida em duas partes, a montagem mergulha nas camadas históricas e contemporâneas do garimpo, expondo a brutalidade e a masculinidade tóxica que floresceram em Serra Pelada, ao mesmo tempo que estabelece diálogos sutis com a obra "Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues.
Assim como na peça rodrigueana, "Serra Pelada" explora temas como a ganância, a usura, a chantagem e a obsessão por ascensão social, elementos intrínsecos à sociedade capitalista. Os personagens são envolvidos por um ambiente de tensão e suspense, onde a violência e a cobiça corroem suas individualidades e valores morais, transformando-os em reféns de seus próprios desejos.
Na primeira parte, a montagem recria a atmosfera caótica do garimpo em seu auge, desde os conflitos entre guerrilheiros do Araguaia e o Major Sebastião Curió até a explosão desenfreada da atividade extrativista. O elenco — composto por Gilda Nomacce, Flow Kontouriotis, Monalisa Silva e Victor Salomão — utiliza balaclavas para obscurecer suas identidades, reforçando a ideia de coletividade e despersonalização que permeia a busca pelo ouro. Esse recurso cênico amplia a sensação de anonimato e desumanização, características marcantes daquela realidade.
Já no ato final, a peça mergulha na ficcionalização de uma jornada de pesquisa, na qual os personagens partem em direção aos garimpos contemporâneos, traçando paralelos com a situação atual no rio Xingu e em outras regiões próximas à Serra Pelada. Essa transição temporal permite uma reflexão contundente sobre a persistência da exploração e da violência, conectando o passado e o presente de forma incisiva. A peça nos confronta com a dura realidade de que, décadas depois, o ciclo de degradação e cobiça permanece inalterado.
A encenação ganha força na atmosfera crua e imersiva do Teatro de Arena, aumentando o impacto da narrativa. A ganância, retratada como uma força corrosiva, não apenas degrada o meio ambiente, mas também aprisiona os indivíduos em um ciclo interminável de exploração e violência. O ouro, símbolo máximo de poder e riqueza, transforma-se em uma maldição que alimenta a cobiça e a destruição, tanto do ser humano quanto da natureza.
Com direção precisa e elenco coeso, "Serra Pelada" transcende o relato histórico para se tornar um espelho crítico da sociedade, questionando até que ponto estamos dispostos a ir em nome do lucro.
Três perguntas para…
…Gilda Nomacce
Qual foi o maior desafio em interpretar uma personagem inserida em um ambiente tão brutal e masculino como a Serra Pelada?
O Alexandre Dal Farra consegue colocar os fatos históricos de uma maneira poética em uma escrita muito desafiadora para um ator de um jeito que eu amo. Me sinto uma contadora de histórias, criando imagens, tentando desvendar esse olhar dele olhando para a Serra Pelada, olhando para a guerrilha, olhando pra esse "outro", um olhar que investiga o terreno.
Depois de muitas referências e todo o material que o Dal Farra trouxe das histórias e vídeos que ele fez lá, eu estou ali olhando pra essa masculinidade onde tantas coisas se passam de maneira brutal, no sentido que você não reage à sua própria delicadeza. Esse lugar é o extremo disso, a Serra Pelada, onde todos eram iguais, todos juntos, todos homens. Na composição do meu personagem, o Mário, eu trazia raiva ou chateação muitas vezes como sentimento, reagindo a esse texto, mas depois entendi que esse personagem não ficaria chateado, o desafio é entender esse jeito de se relacionar o masculino com essa brutalidade que muitas vezes existe como uma brincadeira.
De que maneira aconteceu a escolha do elenco que tem um homem trans, duas mulheres e um homem cis sendo que estão todos em papéis masculinos?
A escolha do elenco se deu, não por acaso, mas justamente por essa razão. Esse gesto também está explicitado na peça, e em certa medida é o seu próprio jogo cênico: interpretar "caras" é também olhá-los com certa distância e, ao invés de tentar sempre imaginar o "outro", o garimpeiro, estranhar justamente o olhar daquele que realiza a viagem, que busca esse outro — transformá-lo num outro também.
Como a história de Serra Pelada ressoa com questões contemporâneas, como a exploração humana e ambiental?
A história talvez seja o exemplo máximo da realização "autônoma" de uma lógica extrativista que fundou a modernidade e que nunca deixou de ser a base da nossa sociedade. No entanto, nessa peça, tentamos justamente entender o ponto em que essa lógica extrativista é também o que organiza nossa própria linguagem, de tal maneira que a peça se volta sobre si mesma: até que ponto, ao falar sobre a Serra Pelada, não estamos também buscando o nosso "ouro" ali, a nossa nova resposta para tudo, a nossa interpretação única para os problemas do mundo?
E nessa obra, preferimos, ao invés de reproduzir tal lógica, jogar fora o ouro, abrir mão da resposta, e ficar com os dejetos, ficar com a busca em si, conviver com ela. Sem deixar que ela se resolva em quaisquer respostas fechadas para a atualidade: temos respostas fáceis demais para problemas que não estamos conseguindo nem de perto abordar, e a peça tenta antes de tudo desviar delas, para sustentar a nossa situação, e conviver com ela.
Teatro de Arena - r. Dr. Teodoro Baima, Vila Buarque, região central. Qua. 15h. Qui. a sáb., 20h. Dom., 19h. Até 23/3. Duração: 90 minutos. Ingressos gratuitos uma hora antes do espetáculo na bilheteria do teatro.