Opinião - Wilson Gomes: A revolta moral na abertura das Olimpíadas de Paris

há 4 meses 24

Cerimônias de abertura de Jogos Olímpicos geralmente são avaliadas por suas qualidades estéticas e técnicas, bem como pela capacidade de emocionar as audiências, mostrar a cidade-sede e fazer com que todas nações se sintam acolhidas. Em 2024 isso é ainda insuficiente. Foi assim que a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris transformou-se em uma questão moral.

Um oceano e mais algumas léguas nos separam de Paris, mas meio Brasil acordou no sábado consumido pela febre da revolta moral. Termos como "vilipêndio", "sacrilégio", "ofensa", "desrespeito" e "profanação" dominaram o debate nos ambientes digitais. Como não havia assistido à cerimônia, precisei de alguns minutos para entender quem eram as vítimas, que ato deplorável havia sido cometido e por que a indignação tinha adotado um vocabulário religioso.

Todos os sumos sacerdotes conservadores expressavam em coro o seu sentimento de ultraje. Eduardo Cunha pregava que as pessoas de bem não podiam "assistir a isso caladas", por se tratar nada menos que de "desrespeito a Deus".

Marcelo Bretas dizia que "essa cena teatral horrorosa é um claro desrespeito ao Cristianismo". Deltan Dallagnol exortava que, em Paris, "profanou-se a fé de dois bilhões e meio de cristãos".

Felipe d’Ávila admoestava contra a "normalização" da imoralidade, advertindo de que "esse é o retrato da depravação que se tornou o 'novo normal': Não é normal. É indecente, imoral e desrespeitoso aos valores cristãos que são os pilares da nossa civilização ocidental. Uma vergonha". Para arrematar, a deputada Zanatta, a da tiara de flores, avisava que "isso não é liberdade de expressão".

Não pretendo fazer um juízo estético ou político sobre a cerimônia de abertura dos Jogos, se foi bonita ou de mau gosto, politicamente conveniente ou um erro. Meu foco é a gramática moral da indignação manifestada pelos conservadores e como ela se assemelha aos surtos de ultraje ético dos progressistas identitários.

Embora o vocabulário religioso seja menos presente, a mesma vitimização é expressa como desrespeito e ofensa. Apenas faltou o "cristofobia é crime"; os outros elementos estão todos presentes —a identidade ofendida e injustamente sitiada, a denúncia da condição de vítima de um opressor imoral, a incitação à mobilização, a reivindicação de que alguém seja responsabilizado, a acusação de seletividade da indignação pública e o veto à normalização. E, claro, o monopólio do debate em torno do teatro moral, como se nada mais importasse além da constatada ofensa aos cristãos.

Três das quatro estratégias essenciais ao identitarismo estão presentes: vitimização, vigilantismo e a reivindicação de que absolutamente todos os que se encaixam nessa identidade foram ofendidos e humilhados. Apenas faltou o punitivismo, talvez por Paris ser distante, mas não faltaram incitações para que as pessoas decentes não assistissem em silêncio nem normalizassem a depravação.

Isso corrobora minha hipótese de que os identitários progressistas e os de direita se retroalimentam. A principal forma dessa simbiose é o teatro do ultraje moral. É um esporte de revezamento, e desta vez a identidade cristã, pilar do Ocidente, dramatizou a ofensa sofrida diante de uma clara provocação "woke".

O mais importante, porém, é que na onda de indignação moral, paradoxalmente, a identidade que se considera ofendida sempre sai ganhando. A denúncia da profanação ou desrespeito mobiliza a militância, reforça a identidade —ninguém larga a mão de ninguém— , prova mais uma vez o quanto o inimigo é perverso, implacável e insensível à nossa dor, e, por consequência, reafirma nossa superioridade moral.

Em suma, mais uma vez o inimigo ardiloso e onipresente nos humilhou, mas que isso sirva de lição sobre como o cristão conservador não tem um dia de paz, precisa estar unido para se defender e estará pronto para dar o troco na próxima eleição. Nada é mais conveniente nessa lógica que um bom dia de fúria moral.

Ondas de indignação são o cerne da estratégia identitária. É impossível evitar esse jogo de ofensas e ultraje na política porque há lados que se beneficiam dele. Publicamente, os grupos deploram as ofensas sofridas, mas seus líderes sabem que precisam dessas manifestações para manter coesa e mobilizada a própria militância.

Na política identitária, não há identidade não oprimida ou não ofendida; a dramatização da ofensa, portanto, é parte integral da estratégia. E nunca houve melhor camuflagem para cálculos políticos do que a boa e velha moral.

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