Opinião - João Pereira Coutinho: A liberdade cegando o povo

há 1 mês 2

Europa, 2024. Em Berlim, a chefe da polícia local adverte: judeus e gays devem ter muito cuidado quando caminham por bairros com maioria árabe. Pode haver problemas.

Li a notícia duas vezes, só para confirmar que não estava surtando. As palavras da senhora Barbara Slowik, para além de não fazerem uma distinção prudente entre criminosos e comunidades árabes inteiras (primeiro erro), acaba por punir as vítimas, não os agressores (segundo erro).

Mal comparado, é como aconselhar as mulheres a não usarem minissaia para não serem violadas. Um Estado de Direito garante segurança para todos, sem excluir do espaço público minorias indesejadas. Melhor ainda: indesejadas por outras minorias.

Que eu saiba, judeus com estrelas amarelas ou gays com triângulos cor-de-rosa ficaram lá atrás, como aberrações da história. A cidade pode ser a mesma. O século é que não. Até porque a estratégia da polícia de Berlim pode não se limitar a judeus e gays. Sabendo que os fanáticos têm uma lista generosa de ódios e preconceitos, quem se seguirá no convite de exclusão? Mulheres sem véu? Cristãos praticantes? Bebedores de cerveja e comedores das famosas salsichas alemãs? O céu é o limite quando o Estado não impõe limites.

2. Suicídio assistido? Existem duas formas de lidar com o assunto. A primeira, rápida e indolor, é adotar uma posição radical qualquer —Deus proíbe; a liberdade individual permite— e fechar o debate antes de ele começar.

Tolero ambas as posições. Mas as coisas, no mundo real, são ligeiramente mais complexas.

Começo com Deus. A ideia de que Deus proíbe é válida para um crente. Mas que dizer a um não crente que agoniza numa cama de hospital, sem cura possível, mendigando por um fim rápido?

O mesmo vale para a liberdade. Eu quero, eu mando? Parece fácil. Não é, não. Até que ponto eu quero? E até que ponto eu mando?

A revista The Economist, atenta à votação histórica que terá lugar no parlamento britânico na próxima sexta-feira, contribui para o debate. Existe um projeto de lei, apresentado pelos trabalhistas, que pretende legalizar o suicídio assistido para doentes em fim de vida. A maioria da população apoia. Mas o resultado da votação é incerto. Por quê?

Segundo a Economist, a discussão que terá lugar será um confronto entre dois conceitos de liberdade, tal como Isaiah Berlin os apresentou no famoso ensaio de 1958. Para os defensores do suicídio assistido, a questão é clara: a minha liberdade (negativa) consiste em atuar sem a coerção intencional de terceiros.

Para os opositores do suicídio assistido, a questão é menos clara: como garantir que essa coerção não existe para condicionar a liberdade (positiva) de seguir a minha vontade genuína?

É uma boa pergunta que remete para a natureza das nossas escolhas. E, aqui, talvez seja Hegel, e não tanto Isaiah Berlin, o melhor guia filosófico. A liberdade, defendia ele, não existe no vazio; ela é determinada pelas circunstâncias em que nos encontramos.

Um doente com dinheiro, apoio familiar e acesso aos melhores tratamentos paliativos terá uma amplitude de escolha que não existe para um doente sem dinheiro, sem família e sem acesso a esses tratamentos. Para o primeiro, o suicídio assistido pode ser uma opção entre várias. Para o segundo, será quase uma fatalidade, sobretudo se a prática se converter em mais um procedimento habitual e até "recomendável", socialmente falando (para poupar recursos, por exemplo).

Uma visão meramente abstrata da liberdade põe esses dois doentes no mesmo plano: ambos são senhores do seu destino.

Mas como garantir essa soberania quando existe um abismo que os separa?

3. E por falar em Isaiah Berlin: agora, não há desculpas, leitor brasileiro! Os interessados no pensamento dele têm nas livrarias um ensaio recém-publicado, que é uma excelente introdução à sua obra. O título é "Isaiah Berlin – Pluralismo e Dois Conceitos de Liberdade" (É Realizações, 166 págs.), da autoria de Leandro Bachega. Meu colega Luiz Felipe Pondé escreve o prefácio e dirige esta promissora coleção de crítica social.

Com inteligência e rigor, Bachega reconstrói os passos essenciais do pensamento político de Berlin: um pensamento antiutópico que reafirma a multiplicidade de valores que os seres humanos sempre procuraram ao longo da história. Ler Berlin, hoje, é evitar as tentações absolutistas de quem oferece "soluções finais" para os problemas da vida em sociedade. O melhor que podemos fazer é estabelecer compromissos entre valores concorrentes para evitar "extremos de sofrimento". O realismo de Berlin é mais valioso do que os delírios messiânicos que andam novamente à solta.

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