Coach, corrupto, condenado, voluntarista, passivo-agressivo, caluniador. São muitas as acusações que os adversários imputam ao candidato Pablo Marçal nos debates para a Prefeitura de São Paulo. No entanto, algo vem escapando de ser notado. Marçal parece estar dando fim ao discurso liberal de goela comum nas direitas brasileiras na última década.
Depois da cadeirada de Datena em Pablo Marçal na última semana, ficou claro que os debates não aprofundam nada sobre as propostas dos candidatos. A eleição paulistana virou ringue de bate-boca, alimentada pelas fake news e calúnias que Marçal joga aos quatro ventos em busca dos almejados "cortes" da internet. Por outro lado, a incivilidade de Datena tampouco contribuiu para a reconstrução do debate político na eleição mais importante do país.
O tom virulento dos candidatos se reproduz entre muitos jornalistas. Quando Marçal é convidado para entrevistas, como foi o caso das sabatinas da GloboNews e do Roda Viva, o que se viu foi um clima inquisitorial que não consegue ir além da acusação ao ex-coach.
Em pouquíssimos momentos, que têm que ser buscados com pinça e lupa, alguns entrevistadores conseguem a muito custo tirar uma proposta da boca de Pablo Marçal. E quando Marçal fala, o que ouvimos são referências a um Estado interventor na economia.
Resolvi então ler as propostas do candidato que constam em seu plano de governo, acessível pelo site do TSE. O que se lê é algo que parece redirecionar a direita brasileira. Finalmente o liberalismo de goela encontra seu ocaso.
Durante a última década floresceu na sociedade brasileira uma série de movimentos de direita liberal. Esta força popular ganhou força na internet e deu origem a movimentos políticos institucionalizados. Alguns mais sensatos, como o Livres, outros mais problemáticos, como o MBL, e ainda outros completamente tresloucados, como o Novo.
A ascensão de Bolsonaro pode ser explicada como parte da ascensão liberal da última década. Em busca de uma liderança que nunca apareceu de forma clara, muitos de nossos liberais de goela toparam se submeter a um capitão fajuto que nunca foi nada além de intervencionista no campo da economia, conservador nos costumes e um sindicalista dos militares.
Em troca do apoio, Bolsonaro se viu forçado a adotar a roupa que nunca teve, e fingiu aceitar os princípios liberais, ao menos na economia. Paulo Guedes, um dos mais incompetentes ministros da economia da nossa história, foi emblema dessa aliança, ainda que completamente ineficaz na prática.
Marçal acaba de vez com esse simulacro. Ele não finge ser liberal. Quem ouve seu discurso e lê seu plano de governo percebe que não há nada de liberalizante em sua plataforma. Ele é um desenvolvimentista ideologicamente frouxo que defende que o Estado intervenha para alavancar a economia. Nada mais antiliberal.
Em seu plano de governo ele diz: "a Prefeitura terá o papel crucial de conectar a demanda e a oferta de trabalho na cidade". E como isso será feito? Sempre através de um Estado interventor como articulador da iniciativa privada. Dilma Rousseff deve ter adorado tais propostas de Marçal. O quanto o Estado entrará de fato é outra questão não aprofundada no plano de governo.
A única vez que as palavras "liberar", "liberalismo" ou "liberalizar" são citadas em seu plano de governo é quando ele defende a inócua ideia de "liberar a faixa da direita para veículos com mais de um ocupante durante horários de pico". Em nenhuma linha Marçal diz que pretende "privatizar" qualquer coisa. Em compensação a palavra "desenvolver" é usada sete vezes. "Desenvolvimento" é usada nada menos que 26 vezes! O Estado desenvolvedor para Marçal é sempre interventor na economia, seja como criador em si de políticas intervencionistas, seja como articulador da iniciativa privada, alavancando-a. Nada menos liberal.
Numa de suas mais esdrúxulas propostas, Marçal defendeu em sabatina no Jornal da Band a criação de um aplicativo nos moldes do Uber. Segundo o candidato, caberia à prefeitura entrar no mercado de aplicativos de carona com o objetivo de acabar com a exploração dos motoristas terceirizados. Depois de consertar o mercado, a prefeitura venderia a empresa pública para o setor privado.
Resumiu Marçal: "A gente fica mandando dinheiro para fora sendo que a gente pode criar o nosso próprio aplicativo e cobrar mais barato das pessoas que são da nossa cidade. [Depois] A gente vende [o aplicativo] por alguns bilhões e faz o quê com esse dinheiro? Coloca ele dentro do caixa da prefeitura". A ideia de arrumar o mercado através da intervenção mágica de uma empresa do governo é o sonho de muito desenvolvimentista de direita e de esquerda por aí.
Marçal é o primeiro concorrente a de fato desestabilizar Bolsonaro de seu lugar de líder supremo das direitas radicalizadas. Muitos foram os derrotados por Bolsonaro quando questionaram seu mando: Gustavo Bebiano, Joice Hasselmann, Sergio Moro, Alexandre Frota, entre outros. Marçal sobrevive vestindo a roupa intervencionista que Bolsonaro renegou.
O Brasil não cansa de nos surpreender. Enquanto Bolsonaro segue dentro do armário liberal, o coach goiano louva o grande capital através de uma concepção de mercado ciceroneada pelo Estado. Marçal não está tão distante assim dos intervencionistas e estatizantes que tanto diz odiar.