Opinião - Gustavo Alonso: A adolescência da narrativa

há 2 semanas 3

A série "Adolescência", da Netflix, se tornou um fenômeno global. Muito já foi dito e escrito sobre, mas quase todos parecem não ver que a série simplifica as personagens femininas na trama, todas elas acessórios aos dramas existenciais dos homens diante do crepúsculo do macho no século 21.

O enredo acompanha Jamie Miller, um adolescente britânico de 13 anos detido pelo assassinato de uma colega de escola. Espanta que uma série fundada basicamente em diálogos tenha conseguido tamanha repercussão. Mérito do roteiro envolvente.

As qualidades da obra são muitas, a começar pelas ousadas cenas filmadas em plano-sequência com duração de 60 minutos. A performance dos atores também chama a atenção, alguns sem experiência anterior em frente às câmeras.

O tema da série é a crise do macho no século 21. O adolescente Miller sente-se um membro do universo dos incels, termo que se refere aos "celibatários involuntários" (do inglês involuntary celibates). Trata-se de homens que se veem incapazes de ter um relacionamento ou vida sexual, embora desejem estar em uma relação. Em teorias da conspiração compartilhadas na internet, culpam as mulheres por suas dificuldades amorosas.

Diante do sucesso, a série levantou opiniões divergentes. Para o roteirista da série, Jack Thorne, há uma crise nas escolas, "e precisamos pensar em como evitar que os meninos machuquem as meninas e uns aos outros".

Para a colunista Joanna Moura a série alerta sobre como filhos vivem uma vida digital secreta da qual os pais pouco ou nada sabem. Na opinião de outra colunista da Folha, Mariliz Pereira Jorge, a série ajuda a mostrar que o machismo e misoginia não desaparecerão apenas com a conscientização feminina. Mariliz argumenta que é preciso incorporar os homens ao feminismo, que muitas vezes afugenta os machos sem buscar de fato transformá-los.

Diante da sedução que a série produz, quase todos parecem preocupados em saber o quanto a obra pode ajudar a mudar a realidade. Essa é a grande vitória de toda obra de arte: fazer sumir suas condições de produção e atirar-nos diante da realidade que ela mesmo ajudou a forjar. Mas, indo além do fascínio estético, é possível tecer algumas críticas que fogem ao oba-oba generalizado sobre a série.

A narrativa se sustenta na máxima de que "os filhos não reproduzem os conselhos, mas as atitudes e exemplos dos pais". O incômodo de muitos pais que assistem a série talvez seja esse. A família "de bem" da série ainda assim gesta um assassino. O filho reproduz o comportamento machista e histérico do pai quando contradito por uma mulher. Mas a série nada diz sobre o caso de crianças com transtornos de personalidade, que não necessariamente estão relacionados à criação que receberam.

Mais grave é a forma como a série, que pretende ser sobre o crepúsculo do macho do século 21, aborda as personagens femininas. Nenhuma delas é complexa o suficiente. Pouco ou nada sabemos de sua história pregressa ou dramas da vida. Mesmo a psicóloga do terceiro episódio —com atuação de Erin Doherty que merece louvor— pouco sabemos para além do que seu profissionalismo permite. Da vítima, apenas sabemos que fazia bullying.

A irmã, a mãe, a policial, a amiga da vítima, e todas as outras ainda mais coadjuvantes, só estão ali para os homens terem suas crises de masculinidade. Elas são planas, quase sem nenhuma profundidade: todas são mero palcos do crepúsculo do macho.

Acabar com o machismo não envolve apenas eclipsar os homens, mas deveria também ser criar personagens femininos interessantes, com seus dramas próprios e questões existenciais densas. Do contrário, o macho, agora frouxo e decaído, continuará sendo o centro narrativo que sempre foi.

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