O Tribunal de Contas decide nesta quarta se Lula deve devolver o relógio Cartier avaliado em R$ 60 mil que ganhou em 2005, durante uma visita à França. Desde que estourou o caso das joias sauditas recebidas por Jair Bolsonaro, relógios alimentam controvérsias políticas. Bendito José Sarney, que atravessou cinco anos de governo com o mesmo relógio. (Barack Obama atravessou oito anos com um modelo barato.) Em 2009, o repórter Orlando Brito fotografou oito modelos diferentes no pulso de Lula.
Há algo de fetiche masculino na paixão por relógios. Em 1967, Che Guevara estava nas matas da Bolívia, sem comida nem remédios para a asma, mas tinha um Rolex no pulso. (O cubano exilado que ajudou a capturá-lo, levou-o.) Vladimir Putin coleciona-os. No Planalto, ninguém superou a Breitling de Fernando Collor.
Jair Bolsonaro deu uma dimensão policial à relojoaria dos hierarcas nacionais. Foi para o governo com um digital comum. No poder, ganhou um Rolex de ouro, cravejado com 184 pequenos diamantes. No escurinho de Brasília, armou sua venda para uma joalheria dos Estados Unidos. Quando se começou a falar dos presentes que havia recebido, usou um advogado amigo para recomprá-lo, por US$ 49 mil. (Os mimos dados a Bolsonaro, incluíam outras joias, bem mais valiosas.)
Relógio é um presente banal, mas os hierarcas de todo o mundo são mimados com peças bombadas. Num primeiro lance, são de ouro. Noutro patamar, vêm cravejados com brilhantes. Assim, passam a ser joias.
Faz tempo, um potentado africano presenteou o presidente francês, Charles de Gaulle, com uma baixela folheada a ouro. Ao vê-la, durante uma cerimônia, o general exclamou: "Ao museu!" Essa deveria ser a reação de todos os hierarcas, ao verificarem que o presente excede o teto que as leis estabelecem para seus funcionários. (Ela não se aplicaria ao Rolex dourado recebido pelo então chefe da Casa Civil, José Dirceu, pois ele era falso.)
Presentinho é uma coisa, joia é outra. O Cartier de Lula é um modelo de ouro, chique, porém simples. A casa francesa criou-o inspirada em croquis do Pai da Aviação, que vivia em Paris e era seu cliente. Foi ela quem o mandou a Lula. Aplica-se, no caso, o comentário do juiz americano usou ao tratar da pornografia: "Não sei defini-la, mas, quando a vejo, reconheço-a". Basta olhar para o presente e para a biografia de quem o dá. O Cartier de Lula difere do Rolex de Bolsonaro no valor e na origem.
Antes que a legislação nacional criasse limites, presidentes brasileiros levavam para casa os presentes que recebiam. O xá do Irã deu ao marechal Castello Branco um magnífico tapete que valia mais que o apartamento do presidente em Ipanema, cuja sala adornava. O general Ernesto Geisel ganhou de uma empreiteira um móvel colonial de sacristia que acreditava valer bastante.
Em 2002, ao ver que a viúva do presidente João Figueiredo havia leiloado os presentes recebidos pelo marido, a filha de Geisel, Amália Lucy, decidiu entregar ao governo os mimos que haviam sido dados ao seu pai. Formada em história, impôs como condição que ela decidiria o destino de cada peça.
Assim foi feito, e o Instituto do Patrimônio Histórico examinou-as. Na vistoria, verificou-se que o móvel colonial, dado pela empreiteira, havia sido feito no início do século 20, com madeira de demolições.