Opinião - Djamila Ribeiro: Violência da polícia paulista traz fantasmas da Favela Naval

há 4 semanas 2

As pessoas mais jovens certamente não vão se lembrar e as que já viveram tanto quanto eu podem ter se esquecido. Mas, em 31 de março de 1997, o Brasil parou estarrecido com as cenas de extorsão, espancamento e extermínio praticadas por agentes do 24º Batalhão da Polícia Militar na entrada da Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo.

O "Caso Favela Naval" repercutiu nacionalmente e projetou o repórter que fez a denúncia para o estrelato das notícias. Ironia do destino ou não, esse mesmo repórter foi mais um que desenvolveu sua carreira em programas policialescos que fetichizam a violência, justificam o uso excessivo de armas e tratam mortes como "acidentais".

O Ministério Público e o Poder Judiciário, como de costume em casos de violência estatal, enterraram quaisquer possibilidades de responsabilização dos agentes superiores àqueles policiais responsáveis por mortes. Foi necessário que os jurados do tribunal do júri, pessoas comuns, condenassem os policiais repetidas vezes, porque desembargadores insistiam em anular os veredictos. Enquanto isso, as famílias das vítimas não receberam proteção nem indenização pelo Estado, que lavou as mãos diante dos crimes de seus agentes.

Mais de duas décadas se passaram e a letalidade da Polícia Militar do estado de São Paulo continuou a chocar qualquer especialista em segurança pública no mundo. De chacinas em operações desastrosas a abordagens que se transformam em execuções sumárias, a cultura da morte foi normalizada. Ainda assim, assombrado pela insegurança amplificada pelo noticiário, o povo paulista elegeu como governador um homem do Rio de Janeiro, estado devastado pelas milícias policiais. Coincidentemente, ou não, esse governador prometeu mais polícia e tolerância zero em sua plataforma, repetindo a cartilha de seus antecessores.

Contudo, esse governador, de perfil considerado como "moderado", escolheu para chefiar a Secretaria de Segurança Pública um capitão da Polícia Militar que foi afastado da Rota —divisão conhecida por sua letalidade extrema— por ser "violento demais". O novo secretário acumula, até então, investigações por pelo menos 16 homicídios.

Sua gestão tem sido coerente com seu histórico: os índices de letalidade, já assustadores, explodiram. Na Baixada Santista, por exemplo, a população foi submetida a um verdadeiro estado de sítio no início do ano, com mortes não explicadas até hoje —mortes que provavelmente nunca serão esclarecidas.

E a Baixada Santista segue sangrando. Recentemente, Ryan da Silva Andrade Santos, um menino de apenas quatro anos, morreu ao ser atingido por uma bala de fuzil disparada pelas forças policiais. Sua mãe perdeu a vontade de viver e a comoção tomou conta da comunidade do Morro São Bento. Chico Nogueira, vereador da cidade, pediu à coluna para somar na visibilidade ao caso e encaminhou uma nota da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, que exige a federalização da investigação.

Enquanto isso, a violência segue em todas as direções. A população vive o terror de arrastões, de assassinatos e de um crime organizado que cresce ano após ano. As condições de trabalho da Polícia Militar são miseráveis: salários baixos, ausência de políticas públicas decentes de suporte psicológico e falta de programas educacionais e de apoio às famílias. Em um círculo perverso, os policiais paulistas estão entre os que mais tiram a própria vida, reflexo da desumanização que permeia o sistema.

Nesse cenário desolador, a cena de um policial do mesmo 24º Batalhão jogando um homem desarmado de um viaduto é uma reencenação macabra dos horrores da Favela Naval.

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Como um fantasma, o caso volta para assombrar assuntos mal resolvidos. E, tantos anos depois, os discursos permanecem os mesmos. Autoridades se dizem chocadas e apressam-se em classificar o episódio como "isolado" e as mídias cobram a resposta para aquilo que elas mesmas passam o ano todo naturalizando.

E o estado de São Paulo permanece como um palco de guerra, onde corpos negros e periféricos continuam a cair. Tudo revoltante e que, num país decente, levaria governador, secretário de Segurança e demais responsáveis por essa situação para o banco dos réus.

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