Esta é minha última coluna de 2024, e não poderia haver figura mais simbólica para encerrar a série sobre os orixás do que Oxalá, "o pai de todos os oris". Ele é o destino final desta jornada que atravessamos juntos nos últimos meses, explorando as divindades do panteão africano e suas conexões com a natureza, os itãs e reflexões contemporâneas.
O candomblé é uma religião, mas também uma maneira singular de estar no mundo, entrelaçando espiritualidade, cultura e cotidiano. Os orixás, ancestrais divinizados, trazem em suas histórias e atributos um diálogo atemporal com a vida e a natureza. Entre eles, Oxalá, representado pelo ar que respiramos, ocupa um lugar único: o orixá da paz, o criador do mundo, o mais velho entre os anciãos.
Para quem se encanta com mitologias, sua figura evoca o titã Atlas (sim, como os mapas geográficos), condenado por Zeus a sustentar o peso do céu sobre os ombros como punição por liderar a revolta dos titãs contra os deuses do Olimpo. Atlas simboliza o fardo, um peso literal. Se tivesse escolha, Atlas soltaria o céu sobre a terra.
Oxalá, por outro lado, carrega o peso do mundo não como punição, mas como escolha. Ele é o arquiteto da humanidade, aquele que, mesmo em sua condição mais frágil, permanece íntegro e fiel à sua missão —uma jornada que não é só sua, mas também do povo que guia e inspira. Um povo que veio sequestrado para este continente e que, séculos após séculos, segue sua caminhada rumo à paz.
O peso do mundo nas mãos de Oxalá –especialmente em Oxalufã, sua representação mais anciã– não é apenas um fardo, mas um ensinamento. Está simbolizado na dança em sua homenagem: passos lentos e cuidadosos, como o caminhar de um caramujo, que refletem o tempo ancestral enraizado na terra. Essa lentidão é, além de um dado da idade, um ensinamento de que tanto importa o destino quanto importa a jornada. Oxalá é a perseverança.
Um de seus itãs mais conhecidos narra justamente uma de suas jornadas: a viagem ao Reino de Òyó, onde seu filho Xangô o aguardava. É uma história sobre uma missão, sobre resiliência e redenção, tema de inúmeras celebrações, incluindo as homenagens do próximo Carnaval.
Antes de iniciar sua viagem, Oxalá consultou um babalaô, que o advertiu sobre os perigos do caminho. Apesar das recomendações para desistir, Oxalá decidiu seguir em frente. O babalaô o orientou a levar consigo três mudas de roupas brancas, três panos brancos, limo-da-costa e sabão-da-costa. Além disso, recomendou-lhe ajudar quem pedisse e aceitar as adversidades sem reclamar.
Munido de seu opaxorô (cajado sagrado), logo no início da jornada Oxalá encontrou Exu, o senhor dos caminhos e mestre da comunicação. Em sua forma travessa, Exu carregava um tonel de dendê e pediu ajuda. Oxalá, generoso, o auxiliou, mas Exu derramou o dendê sobre ele e desapareceu com uma gargalhada. Sem se abalar, Oxalá se lavou no rio, trocou de roupa e prosseguiu.
Mais adiante, Exu reapareceu com um saco de carvão. A cena se repetiu: Oxalá ajudou e, em troca, teve o carvão derramado sobre si. Ainda assim, ele manteve a paciência, seguiu as recomendações do babalaô e continuou sua caminhada. Na terceira vez, Exu surgiu com um tonel de melado, e o episódio se repetiu, deixando Oxalá sem sua última muda de roupa. Mas, fiel às suas promessas, ele seguiu.
Ao se aproximar de Òyó, Oxalá encontrou um cavalo branco que havia escapado dos estábulos do palácio de Xangô. Decidido a devolvê-lo, mesmo sem que ninguém lhe pedisse ajuda, ele guiou o animal até a cidade. Na entrada do palácio, os guardas, ao verem o ancião conduzindo o cavalo que estavam procurando, acusaram-no de roubo. Sem lhe dar a chance de se explicar, espancaram-no e o prenderam. Por longos sete anos, Oxalá permaneceu na prisão, em silêncio, esquecido por todos.
Durante os anos de prisão, terríveis infortúnios se abateram sobre o Reino, até que Xangô, sem saber que seu pai estava preso, descobriu a injustiça. O orixá da Justiça, que sopra fogo pelas narinas, desmantelou a prisão e, em honra a Oxalá, mandou buscar as mais límpidas águas do reino para banhar seu pai. Daí nascem as "Águas de Oxalá", um ritual realizado em todos os terreiros do Brasil, como forma de pacificar, restaurar e purificar o espírito.
Desejo a todas e todos que me acompanharam ao longo deste ano boas festas e momentos de paz em suas comunidades. Que os ensinamentos de Oxalá inspirem nossos passos: que tenhamos a determinação e serenidade para enfrentar os desafios. Que tenhamos generosidade, porém com sabedoria. Até uma próxima série! Axé!