A mais recente morte de um jovem senegalês no centro de São Paulo confirma o que já sabíamos: não são casos isolados nem desvios individuais. É a engrenagem de um sistema que criminaliza a sobrevivência e transforma a pobreza em alvo.
Ngange Mbaye, que deixa sua esposa grávida de sete meses, se soma a Talla Mbaye —também senegalês, ambulante, morto meses atrás em circunstâncias igualmente violentas durante ação policial no mesmo território, o Brás. Escrevi a esta Folha quando da sua morte e das manifestações que se seguiram.
O Brás, cada vez mais ocupado por imigrantes africanos, tornou-se símbolo da luta cotidiana por subsistência —e, por isso mesmo, alvo preferencial do controle estatal. Um espaço onde o poder público escolhei ntervir com força letal, em vez de desenvolver políticas de empoderamento e buscar melhorar a vida das pessoas.
É nesse cenário que opera a chamada Operação Delegada, uma política de segurança pública implementada pela lei municipal número 14.977/09, que estabelece um convênio entre a prefeitura e o governo estadual que permite a atuação de policiais militares em seus dias de folga para "reforçar" a ordem pública.
O nome técnico esconde uma prática alarmante: a perseguição a imigrantes disfarçada de política urbana, pois, embora a Operação Delegada não tenha sido criada com esse propósito específico, a atenção ao controle do comércio informal atinge diretamente o meio de subsistência de muitos imigrantes africanos.
O que se vende como reforço de segurança é, na prática, um dispositivo de repressão contra quem já vive à margem: apreendem mercadorias, confiscam meios de trabalho, intimidam quem ousa reagir. Evidentemente, avançam sobre brasileiros no mercado informal —todos, ou quase todos, pessoas pobres.
Por isso, a força usada para destruir um carrinho com roupas ou apreender uma caixa de relógios não tem justificativa —tem ideologia. E ela se sustenta nas engrenagens que seguem, sistematicamente, aprofundando desigualdades e se escondem por medidas hipócritas que não trazem saídas satisfatórias, quiçá emancipatórias.
As violências e seguidas mortes não apresentam qualquer resultado para o governo estadual. A operação consome recursos públicos expressivos da segurança, mas não apresenta resultados reais —a não ser mais medo e violência. Dizer que a Operação Delegada coíbe o comércio informal chega a soar cínico para qualquer um que circule pelo centro da capital.
Nesse sentido, para muitos imigrantes africanos recém-chegados ao Brasil, a informalidade é o caminho possível de trabalho, e a união comunitária, a única forma de sobreviver. Como bem resumiu a Conectas: "O uso de armamento letal durante o inspecionamento de mercadorias de trabalhadores desarmados é desnecessário e apenas estimula, em mais uma frente, o abuso de poder que alimenta o genocídio da população negra e periférica".
Não basta somente responsabilizar os agentes envolvidos nessas mortes, embora isso seja fundamental. O problema não é somente de ordem pessoal, como policiais específicos e descontrolados que não contaminam a corporação. Essa é a saída covarde ao problema criado, que não trará melhoria alguma ao serviço público.
É preciso reconhecer o caráter sistêmico da violência, abandonar a política fracassada e se responsabilizar pelas famílias que foram devastadas. Tentar reparar minimamente o mal que está sendo feito e transformar a abordagem ao cidadão e cidadã imigrante.
Essa responsabilidade é compartilhada. A política migratória envolve os três níveis de governo —e todos têm falhado com os imigrantes africanos e haitianos, bolivianos etc. Ainda que os policiais envolvidos nas mortes estejam sob comando estadual, os outros governos não são inocentes e precisam agir com vistos de trabalho, centros decentes de convivência e desenvolvimento da população negra imigrante.
Diante desses argumentos apresentados, será que não está na hora de revogar a Operação Delegada e, em vez disso, aplicar melhor o dinheiro investido? Precisamos repensar o que entendemos por segurança pública e exigir a implementação de políticas que lidem com o problema do comércio clandestino de forma mais digna.
Dito isso, não vamos esquecer o que aconteceu com Talla, nem o que aconteceu com Ngange. Nós, como população negra com espaços na imprensa brasileira, temos o dever de fazer essas denúncias e exigir respostas dos governantes.
Toda solidariedade à comunidade senegalesa.