Os números do feminicídio e a violência generalizada que acomete o Brasil são desesperadores e é triste não ver uma saída realmente satisfatória para essa situação. Porém, neste texto, gostaria de abordar a violência em série cometida pela polícia do estado da Bahia: um verdadeiro descalabro, uma política de genocídio. E é uma vergonha ainda maior considerando que, há quase duas décadas, o governo da Bahia é liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), um fato que não deveria impedir a crítica necessária e urgente.
Afinal, quando a polícia de São Paulo joga um jovem de uma ponte, apontamos com razão que se trata da polícia do Tarcísio —inclusive escrevi sobre isto recentemente na Folha, sobre as necessárias responsabilizações do governador e de seu secretário de segurança. Mas o que pergunto é: por que não devemos apontar que a polícia baiana, que mata mais do que toda a polícia dos Estados Unidos, é a polícia do Jerônimo, do Rui Costa, do Jaques Wagner?
Sou uma das poucas escritoras a enfrentar esse tema de forma franca. Em agosto de 2023, quando do assassinato brutal e inaceitável de Mãe Bernardete, liderança de terreiro morta no interior de sua própria casa em circunstâncias longe de serem devidamente esclarecidas, escrevi o seguinte nesta Folha:
"Somente nesse estado da Bahia, em um ano, a polícia matou mais do que toda a polícia dos Estados Unidos, segundo dados do Anuário de Segurança Pública. Em qualquer governo estadual e federal isso é uma vergonha. Em um governo progressista, então, me faltam palavras para definir. A polícia de governos estaduais de direita matam, as de esquerda também. Se um ex-governador do Rio de Janeiro afirma que é para 'mirar na cabecinha', um outro na Bahia diz que policiais são artilheiros na frente do gol. Partidarizar essas mortes endêmicas no país por proselitismo político deveria envergonhar quem se diz intelectualmente honesto".
Destaco a citação pois, ainda que seja atual e pertinente, penso também que é necessário ter coragem e, sobretudo, memória num país de gente covarde, que não só partidariza esse proselitismo como ainda mente a meu respeito. Eu me orgulho de ser uma intelectual negra independente, no sentido descrito por bell hooks, que, entre muitas coisas, afirma que, como vivemos numa sociedade fundamentalmente anti-intelectual e difícil para os intelectuais comprometidos e preocupados com mudanças sociais radicais, é preciso afirmar sempre que o trabalho que fazemos tem impacto significativo.
Nesse sentido, fico pensando em como um tema tão grave e urgente como o genocídio cometido pela polícia baiana pode concorrer com a indignação seletiva diante da substituição do nome de Iemanjá pelo de Rei Yeshua por uma cantora em uma letra de música. Foi com essa indignação que me vi bombardeada de notícias e textões pseudorrevolucionários a respeito. Ora, que fique claro: o que Claudia Leitte fez é um desrespeito inegável. Mas, convenhamos, há algo mais óbvio que isso?
O problema não está na troca dos nomes; o problema é que Claudia Leitte tenha sido validada como cantora de axé em primeiro lugar. A troca foi apenas a cereja do bolo de uma narrativa que já estava fora do eixo havia muito tempo. Bolo esse sobre o qual muitos de seus confeiteiros se dizem agora surpresos com o resultado.
Pessoas que adularam, incensaram, financiaram, quando não fizeram a mesma coisa e cantaram músicas e/ou bajularam autores de "hinos racistas" em um ritmo negro, agora se dizem revoltadas. Para além de muita indignação, há uma indústria que se reorganiza e deixa seus bois de piranha de tempos em tempos. Lucram com o axé e o gospel e, ainda assim, como os governadores, se livram de responder por seus crimes.
Feita esta breve digressão, pois o Brasil não é para iniciantes, mas sim para iniciados, por que não voltamos ao que realmente importa?
Há uma urgência em apontar os crimes de uma política pública que tem acumulado taxas estratosféricas de homicídios sob governos que deveriam ser responsabilizados. Sim, é necessário que governadores e seus antecessores sejam levados ao banco dos réus. Que um promotor, como um artilheiro diante do gol –a infeliz analogia emprestada por um ex-governador baiano–, os acuse pelos crimes contra sua própria população e marque seu golaço.
Os dados falam por si. Segundo o Anuário de Segurança Pública (sempre importante citar), a polícia da Bahia é a que mais mata no Brasil. Trata-se de um dado insuperável e que, por si só, exige perguntas, respostas, mudanças e consequências aos agentes responsáveis na máquina estatal.
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