No último domingo, a Marinha do Brasil divulgou um vídeo institucional que gerou intensa controvérsia. A peça comparava a rotina dos militares a momentos de lazer dos civis, encerrando com a provocativa frase: "Privilégios? Vem pra Marinha". A repercussão negativa foi imediata, evidenciando como percepções distorcidas sobre privilégios podem alimentar debates polarizados e impedir avanços necessários.
Esse episódio reflete uma tendência mais ampla em que grupos privilegiados minimizam os benefícios que possuem. O estudo de Daniel M. Mayerhoffer e Jan Schulz ilumina os mecanismos sociais e psicológicos por trás dessa dinâmica. Eles demonstram que, em grupos sociais homogêneos, indivíduos tendem a subestimar as desigualdades existentes. A homofilia —tendência de se relacionar com pessoas semelhantes em renda, classe social e outras características— cria bolhas que reforçam percepções enviesadas.
Para os privilegiados, a falta de contato com realidades diferentes alimenta a ilusão de que não desfrutam de vantagens significativas. Esse fenômeno não se restringe aos militares. Carreiras de elite no serviço público, como magistrados, membros do Ministério Público e auditores fiscais, frequentemente utilizam brechas legais para manter benefícios desproporcionais, driblando o teto constitucional.
Folha Mercado
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Em 2022, cerca de 700 mil servidores públicos, entre ativos e inativos, receberam remunerações acima do teto de R$ 39,2 mil, totalizando gastos de R$ 3,9 bilhões, segundo estudo do CLP. Esses valores são inflados por auxílios e verbas indenizatórias que escapam à tributação e reduzem a transparência. Enquanto isso, servidores municipais que atuam em áreas essenciais como saúde e educação recebem salários muito inferiores. A mediana salarial do Judiciário Federal é de R$ 17.999, enquanto a de servidores municipais é de apenas R$ 2.500.
A discrepância não é apenas financeira; afeta a confiança nas instituições. Quando elites do funcionalismo capturam recursos públicos para manter privilégios, a percepção pública das instituições democráticas é corroída. Ao subestimarem as desigualdades, os privilegiados perpetuam ciclos de ineficiência e ativamente bloqueiam reformas que beneficiariam a maioria.
Mecanismos psicológicos estão em ação: a falta de diversidade nas redes de contatos desses grupos limita a compreensão das disparidades reais. Eles dependem de informações locais, reforçadas por seus pares, e negligenciam sinais globais que indicam desigualdades.
O déficit per-capita do regime de previdência dos militares é 16 vezes superior ao do INSS, de acordo com levantamento do TCU. Cada beneficiário militar gera um déficit anual de R$ 159 mil, enquanto aposentados do INSS e servidores públicos civis geram déficits de R$ 9,4 mil e R$ 69 mil, respectivamente. Então, medidas como a limitação de supersalários, o alinhamento dos benefícios do setor público aos padrões do setor privado e a implementação de avaliações de desempenho são urgentes. As Forças Armadas tampouco deveriam ficar de fora dessa agenda.
O problema vai além de um vídeo polêmico; revela uma estrutura profundamente desigual que direciona recursos públicos a grupos específicos em detrimento do interesse coletivo. Essas distorções agravam desigualdades e minam a confiança nas instituições, consolidando um ciclo vicioso de exclusão, empobrecimento e enfraquecimento da democracia.