O Brasil é o país do golpe sem custo ou consequência. Entre nossas leis da história, a anistia, também chamada de pacificação, está entre nossas continuidades mais retumbantes. Não se confunde com perdão cristão e misericordioso, com indulto ético ou democrático. É, acima de tudo, uma tradição de cumplicidade autoritária.
O historiador Carlos Fico não só nos lembrou que "na história do Brasil, quando as tentativas de golpe fracassaram, sempre houve anistia", mas também as enumerou. Foram sete tentativas de golpe bem-sucedidas (1889, 1930, 1937, 1945, 1954, 1955, 1964) contra sete tentativas fracassadas (1904, 1922, 1924, 1956, 1959, 1961, 2022-2023).
Esse curioso placar de empate é enganoso sob um aspecto: nas 14 ocasiões de ataque à lei e ao Estado de Direito, nenhuma resultou em responsabilização. Mas foi ao longo da redemocratização de 1988, na busca de uma cultura constitucional de direitos e liberdades mais robusta, que se conseguiu falar de forma mais séria em verdade, memória e justiça.
Três filosofias da memória se chocam na política brasileira. A primeira, encampada por Dilma Rousseff na Comissão da Verdade, por movimentos de direitos humanos e procuradores da República que ainda tentam interpretar a Lei da Anistia à luz da letra e espírito da Constituição de 1988, foi sintetizada por Eunice Paiva em "Ainda Estou Aqui": "É preciso conhecer o passado para evitar que ele se repita".
A segunda, defendida anos atrás pelo STF, que se aliou a militares para afirmar que a Lei da Anistia nos ajuda a prevenir revanchismos, foi sintetizada por Lula: "O golpe de 1964 já faz parte da história, o povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Eu, sinceramente, não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para frente".
Enquanto Lula, que nunca recebeu familiares de mortos e desaparecidos, se juntou a militares para abraçar a filosofia do "vamos olhar pra frente" e vai jogando com a inércia do status quo para facilitar a continuidade da delinquência política, a corrente de Eunice Paiva continua a gritar "não dá pra olhar pra frente sem olhar pra trás".
A terceira filosofia talvez esteja mais bem representada no STF. E quem a resumiu de forma mais cristalina foi advogado carioca que tem clientes como Flávio Bolsonaro pelas rachadinhas, Anderson Torres pelo 8 de janeiro, Sérgio Cabral pelas contas públicas e militares acusados de matar e sumir com o corpo de Rubens Paiva. Disse ele:
"O processo estava parado havia cerca de dez anos. Voltou a ser movimentado depois da première do filme ‘Ainda Estou Aqui’. A impressão que o país passa para o cenário internacional é que as agências públicas brasileiras só funcionam quando há alguém espiando."
"Funcionar" quando há "alguém espiando" capta muito bem o moto do STF. Desde 2014, dormiu em cima de denúncia contra cinco militares acusados de homicídio, ocultação de cadáver e quadrilha armada contra Rubens Paiva. Dois ainda vivos recebendo salário, enquanto parentes dos três mortos recebem pensões. Em 2024, quando Fernanda Torres encanta o mundo no cinema, Alexandre de Moraes pediu providência.
Diante da tentativa de golpe de 8 de janeiro, cujas consequências estão em aberto, Lula e STF prometem se unir a Eunice Paiva. Como se 64 pudesse ficar soterrado.