Opinião - Claudio Manoel: Feito conversas ao vento

há 2 semanas 3

Há muitos anos, numa encarnação anterior, estava com amigos num restaurante quando, vinda do nada e de outra mesa, ouvimos uma frase, sem nenhum contexto, emitida por uma voz feminina: "Eu acho cachorro muito simplório".

A inesperada declaração nos dominou. Começamos a especular, discretamente, se aquela opinião coletada num fragmento de conversa abarcaria todos os tipos de cães (naquele tempo não se sabia da existência de lulus-da-pomerânia, o que talvez mudasse tudo) ou só os mais comuns?

Haveria algum animal doméstico (ainda não tinham virado "pets", que na época eram só garrafas) considerado por ela mais complexo ou sofisticado? Um simples gatinho? Achamos improvável. Uma iguana? Uma cacatua?

O fato é que, a partir de então, sempre que um pedaço de assunto alheio colidia comigo classificava-o, de imediato, como mais um "cachorro simplório". E de lá para cá já colecionei vários.

Um importante exemplar da minha coleção foi coletado quando caminhava distraído numa calçada movimentada, perto de uma dupla de elegantes senhorinhas, e uma delas disparou: "Na-na-ni-na-não! Você está redondamente enganada! O AR-15 tem um alcance muito maior que o AK-47!".

Aquilo dizia tudo ou muito. Não é preciso nenhuma dica para adivinhar em que cidade aconteceu. Onde mais, duas pacíficas septuagenárias conversariam, tranquila e corriqueiramente, sobre potência de fuzis? No Rio de Janeiro, é claro! A capital da bandalha e da bala perdida, onde nem o crime organizado se organiza.

E devagar, devagarinho, fui divagando: quem seria a idosa expert em armamentos? Uma profissional aposentada? Uma autodidata? E o mais importante: ela estava certa? Sim, estava. Pesquisei.

Outra pérola do meu acervo foi recolhida de forma similar: também caminhando logo atrás de duas mulheres, essas numa faixa etária mais jovem, talvez na casa dos 50. Estava distraído quando, de repente, fui atingido: "É impressionante! Depois que me separei do Carlos Eduardo, meu intestino voltou a funcionar que é uma beleza!".

Fiquei comovido e impressionado. Aquilo é que era uma relação, literalmente, visceral. Aquele relacionamento sim vivia "lutas intestinas". Que poderes possuía ou quão chato era o ex-marido para conseguir tamanho trancamento?

A mais recente aquisição foi obtida em Salvador, quando escutei só um caco de conversa entre dois típicos cidadãos locais: "Oxe! E quem é que aguenta ser homem 24 horas, todo dia?". Uma pergunta profunda e, surpreendentemente, tão desconstruída, que ainda não construí nenhuma teoria ou elucubração a respeito.

Ultimamente, talvez porque tudo esteja cada vez mais fragmentado, efêmero e desmanchando no ar, junto com tantos falando muito, alto e "sozinhos" com seus aparelhos, a captura de "cachorros simplórios" tenha ficado mais difícil.

Mas eles ainda estão por aí, atacando quando menos se espera. Aproveite.

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