A tradição de praticar futebol em solos naturais —grama, terra ou mescla desuniforme de ambos, como na nossa charmosa várzea— foi rompida a partir da década de 1960, com a criação dos campos sintéticos. Estes vêm com vantagens: propiciam uma superfície plana e sua manutenção é mais fácil ante as intempéries do clima (escassez de luz solar, água e calor).
Mas o mundo futebolístico ainda teme o gramado artificial. O fato de que não há lesão nesse tipo de superfície que escape às manchetes de jornais é um sinal disso. E aqui outro: Premier League, La Liga e Bandesliga baniram o sintético. Tal como fez a própria FIFA para a Copa do Mundo de 2026. (Embora o permita, paradoxalmente, em todas as competições oficiais).
"Nas grandes ligas da Europa (o campo sintético) é proibido. Isso por si só já diz o quão negativo é. Por que aqui vamos usar? Estamos na contramão." A opinião é do presidente da Federação Nacional dos Atletas de Futebol, Alfredo Sampaio, publicada em texto do UOL. Ela se assenta na sabedoria de que onde há fumaça há fogo. Mas, na ciência, a fumaça pode ser mero viés cognitivo a embaçar os fatos. Convido o leitor a ligar o exaustor.
Numa das mais recentes e completas investigações sobre o assunto, pesquisadores revisaram 22 estudos que reportaram lesões durante a prática do futebol em campos sintéticos ou naturais.
Ao contrário do que se poderia intuir, a incidência de lesões (joelho, coxa, pélvis etc) foi 14% inferior em campos artificiais. Análises adicionais revelaram que tanto homens quanto mulheres (em contraste a achados anteriores) se machucaram menos no sintético. A conclusão se manteve firme para atletas profissionais. Entre os amadores e as crianças, contudo, o número de lesões foi similar nos diferentes tipos de superfície.
Os autores fazem bem ao ressalvar que os estudos revisados estão concentrados na Europa e nos Estados Unidos. Não há uma única pesquisa feita na América Latina, infelizmente. Além disso, em poucos trabalhos houve algum controle de fatores que poderiam influenciar o número de lesões, tais como clima, umidade da grama, tipo de chuteira utilizada e histórico de lesões do(a) atleta. Essas lacunas nos lembram da natureza efêmera da ciência e da necessidade constante de novas e melhores investigações.
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Mas de volta aos resultados, o mais curioso é como eles divergem da percepção geralmente negativa que a comunidade da bola tem sobre os gramados sintéticos.
Um levantamento realizado com treinadores holandeses revelou que 63% deles viam o campo sintético como o futuro do esporte, e 57% acreditavam que esse tipo de superfície favorecia a habilidade dos jogadores. Porém, quando instados a escolher entre o natural e o artificial, 70% declararam preferência pelo primeiro. A mesma tendência foi observada em pesquisas com jogadores profissionais, que manifestaram maior medo de lesão e sensação de pior desempenho físico e técnico quando atuavam no sintético.
Não sabemos em que medida campos artificiais —ou a generalizada percepção negativa sobre eles— modificam o desempenho esportivo no futebol. A resposta pode passar por diversos fatores: preferência individual, adaptação ao piso, características físicas, técnicas e táticas do jogador, condições climáticas, qualidade do gramado e, sobretudo, alternativas disponíveis (rende-se melhor num sintético em bom estado ou num natural esburacado?).
Mas se há de pautar a discussão em evidência, dirigentes, técnicos, jogadores e jornalistas precisam reconhecer que o risco de lesão pode não ser um argumento sólido para torcer o nariz ao polêmico "tapetinho".