O fotógrafo italiano Oliviero Toscani, morto aos 82 anos, fez alguns do cliques mais marcantes e provocadores da história da publicidade. O ex-diretor artístico da marca italiana United Colors of Benetton por décadas foi referência da chamada "propaganda de choque", que fez suas imagens serem censuradas por diversas instituições e órgãos pelo mundo afora.
Os críticos argumentam que a Benetton faz marketing com imagens chocantes, como a de uma pessoa doente, com Aids, e a de um beijo entre um padre e uma freira. Esse debate esteve no centro de um entrevista que Toscani deu aos jornalistas Mauricio Stycer e Nelson Blecher, publicada na Folha de 11 de outubro de 1993. Releia a conversa abaixo.
Qual é a ideia da última campanha da Benetton (a marca 'HIV Positive' tatuada nos personagens da publicidade)?
Não é uma ideia. É uma realidade. Quem é soropositivo é discriminado pela sociedade, pelos amigos, pela família, pela escola...
De que forma essa campanha contribui para diminuir a discriminação?
Se a pessoa se der conta de que existe uma discriminação de fato, já terá sido importante, já terá sido positivo.
Há críticos que veem nesta campanha, como em outras da Benetton, apenas uma procura do impacto pelo impacto. O sr. não teme que, de tanto causar impacto, a publicidade da Benetton acabe não causando mais nenhum impacto?
Não faço campanhas procurando causar impacto. O conteúdo das minhas campanhas criam impacto porque, finalmente, a publicidade mostra que pode ser um meio útil.
Útil para quê?
Para mim não existe diferença cultural entre imagens. Uma imagem de publicidade vale tanto quanto uma imagem de jornal. As imagens estão criando a cultura moderna, sejam elas imagens de publicidade, de jornal, de televisão, de livros, sejam de panfletos. Para mim é tudo igual.
Por que a comunidade publicitária é tão crítica em relação ao seu trabalho?
Somente por ciúme. Grandes agências não têm criatividade.
O sr. quer dizer que a média dos publicitários não tem criatividade?
Não! Não a média. Nenhum publicitário tem criatividade, eu acho. Um dia, os arqueólogos virão à Terra escavar para ver como era feita a nossa sociedade e acharão um mundo de verdade, onde havia Aids, guerras, Iugoslávia, onde havia Brasil, favelas, crianças morriam de fome, e depois encontrarão o mundo imaginado pela publicidade, que não tem nada a ver com o mundo real. E para fazer esse mundo burro, imbecil, esses publicitário gastam milhões de dólares. Não tenho nenhum respeito pelos publicitários. Considero-os verdadeiramente burros.
O que é, para o sr., a publicidade?
A publicidade não existe. A publicidade é qualquer coisa que é pública.
Como será a publicidade do próximo século?
A publicidade será um meio de comunicação como outro qualquer, que devemos usar de modo útil e inteligente. Você sabe quais são as únicas palavras ditas em todo o mundo da mesma forma e que todos entendem?
Não.
Coca-Cola.
E táxi?
Não. Táxi se pronuncia diferente em cada país. Não é como Coca-Cola. Incrível, não? Todos sabem o que é, que sabor tem, qual a sua cor e como se escreve. Conclusão: somente a publicidade foi capaz de criar o esperanto.
O sr. ambiciona o mesmo para a Benetton?
Não! Dei a Coca-Cola apenas como exemplo de que se pode comunicar com a publicidade.
A falta de palavras na publicidade Benetton se explica por essa tentativa de alcançar uma comunicação global?
Esta é a primeira razão. Depois, tenho a seguinte teoria: a palavra escrita quer sempre encontrar a verdade. E, a verdade, no fim, jamais é encontrada. Enquanto que a imagem é mais verdadeira do que a verdade. É tão verdadeira que pode até chocar.
Não é verdade. As novas tecnologias permitem alterar e retocar as imagens sem que ninguém perceba.
Mas é sempre uma realidade. A palavra criou a torre de Babel. A imagem resolveria o problema da torre de Babel.
O sr. não retoca nunca uma fotografia?
Não... Essa é uma discussão mais filosófica do que técnica. Todos podem falar de Deus. O sr. pode escrever de Deus. Mas eu não posso fazer uma fotografia de Deus. Logo, tudo o que se fotografa deve ser real, não pode ser nada além de real?
Qual a campanha Benetton que o sr. mais gosta?
Esta última, com certeza. Porque é a mais simples, é a mais eficaz e a mais "cortante". Num certo sentido, a crueldade desta campanha revela também sua generosidade.
Como nasceu essa campanha?
Eu estava em Minneapolis, no centro-oeste americano, quando vi num telejornal local um rapaz que foi nu à escola com uma tatuagem no braço: "HIV Positive". O diretor da escola não estava preocupado em cobrir o sexo do rapaz, mas em cobrir essa tatuagem. Isso me impressionou muito. O sentimento de culpa da sociedade diante desta realidade é inacreditável!
Neste momento, o sr. teve o estalo da campanha?
Sim. Aquele rapaz queria sensibilizar a opinião pública para o fato que o Estado não faz tanto quanto deveria fazer pelos soropositivos. A discriminação é um problema muito atua. Entre os próprios soropositivos, há muita discriminação. Um soropositivo que contraiu o vírus em uma transfusão de sangue não quer ser misturado com o homossexual. Isso é inacreditável!
Qual foi a reação de Luciano Benetton a esta campanha?
Ele gostou muito. Disse que ganhamos muita credibilidade com essa campanha.
Por que a Benetton prefere a mídia impressa à TV?
Eu prefiro. Porque a TV é muito cara e causa menos impacto.
É verdade que o sr. não permite que seus filhos assistam televisão?
Não é que não permito. Ensino-os a fazerem coisas mais interessantes. Assistir televisão é uma perda de tempo. Faz mal ao cérebro. Na minha casa, não há televisão. Se não há, ninguém procura. Sou contra a televisão porque ela é um instrumento passivo. Não se aprende nada quando se é passivo. Uma hora de TV ao mês basta! Compreende-se tudo com uma hora ao mês, em qualquer lugar do mundo, porque a televisão é burra no mundo inteiro.
O sr. conhece alguma coisa da publicidade brasileira?
Não. É boa?
Há coisas boas e coisas ruins, como em todo lugar.
Há duas categorias que arruinaram o mundo nos últimos 50 anos: os projetistas de arquitetura e os publicitários. Os publicitários fizeram um desastre cultural. Um dia, haverá um Tribunal de Nuremberg para a publicidade. Os projetistas de arquitetura italianos arruinaram o país. A Itália era um "bel paese", agora está cheia de casinhas de cimento. Eles engessaram a Itália!
Por que a Benetton aboliu as imagens de produtos em sua publicidade?
O produto existe no catálogo. Não adianta mostrá-lo na publicidade. Pense na publicidade da Olivetti: de qual produto o sr. se lembra? São muitas imagens. É assim com qualquer marca. Todo mundo sabe que a Benetton produz roupas. Não precisamos mostrar. Vá na loja e veja. Temos lojas em todos os lugares.
Essa última campanha ("HIV Positive") não pode passar a impressão de que a Benetton deseja que todos os soropositivos se identifiquem ou sejam identificados?
A campanha permite várias leituras. Há quem pense assim. Não se pode generalizar. Nunca. É um erro. É uma questão pessoal dizer se está doente ou não. Mas acho que é uma questão a se pensar. Talvez um dia se chegue a um "agreement" civil. Assim como decidimos que deve haver o passaporte ou carteira de motorista, talvez se decida que devemos dizer se temos ou não a doença.
Quando sairá a próxima campanha da Benetton?
Em março/abril de 94.
O sr. já tem alguma ideia em vista?
Vamos abordar, com certeza, algum problema social.
Se o sr. tivesse que fazer essa campanha hoje, qual seria o problema social mais importante a abordar?
A guerra na Iugoslávia. É um desastre, um desastre.