Afinal, o que nos faz humanos?
A pergunta pode até parece simples, mas não é tão fácil assim de responder. A explicação não está somente na biologia, nos genes e cromossomos, na sociologia nem forma como criamos organizações complexas. Ela vai além. E talvez a melhor definição tenha sido dada pelo poeta mexicano Octavio Paz.
"O homem é homem graças à linguagem", afirmou o vencedor do Nobel de Literatura de 1990. "Graças à metáfora original que o fez ser outro e o separou do mundo natural. O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo".
As palavras de Paz ganham corpo e eco num livro que acaba de chegar às livrarias: "Ugh! Um Relato do Pleistoceno". A obra é mais uma parceria do peruano Rafael Yockteng com o colombiano Jairo Buitrago, autores dos premiados "Eloísa e os Bichos", "Para Onde Vamos" e "A Caminho de Casa", por exemplo.
No novo "Ugh!", tudo começa como se estivéssemos assistindo a um filme. Primeiro, vemos uma manada de animais corpulentos, que lembram bisões. Depois, é descortinado um cenário pré-histórico, com vulcões em erupção, fósseis expostos e preguiças-gigantes. É quando reparamos nuns seres menorzinhos, pequenos mamíferos que se embrenham no mato, empunham lanças, vestem peles e se preparam para caçar em grupo.
Sim, são seres humanos. Os primeiros seres humanos. Nossos antepassados. Gente nômade, que caçava a megafauna e era caçada por ela. Como naquela época a linguagem como a conhecemos ainda não tinha se desenvolvido, o livro exibe tudo isso apenas com imagens em preto e branco. Sem nenhuma palavra, tudo é ação, movimento, presente, aqui e agora.
O ápice ocorre quando um dos hominídeos cai. Em close cinematográfico, vemos o seu olhar de desespero e o avanço de um dos bisões, que bufa com fúria e galopa em sua direção.
Nesse instante, há um corte na narrativa. Não sabemos o que acontece depois. Ao virar a página, encontramos um fundo branco, onde lemos o título, "Ugh!", como se fosse o grito pré-linguístico do personagem que estava prestes a ser pisoteado.
Nas 16 páginas duplas seguintes, tudo continua igual, somente com imagens e sem nenhuma palavra, fazendo com que o leitor acompanhe uma narrativa visual na qual um grupo de seres humanos caminha por florestas, foge de predadores como tigres-dente-de-sabre, escala montanhas, enfrenta a neve, desafia penhascos, encontra mamutes. Até que se refugia numa caverna, onde mata um urso e acende uma fogueira.
Mas a pergunta continua. Afinal, o que nos faz humanos?
Nesse início, o livro parece sugerir que a resposta é a nossa bravura. Ou então a esperteza de usar armas para caçar bichos muito maiores. Quem sabe as técnicas para controlar o fogo e manejar ferramentas que ampliam as nossas chances de sobrevivência num mundo hostil e perigoso.
Só que tudo muda quando uma das personagem resolve olhar com mais atenção as paredes da caverna. É uma mulher, pequena, longe de ser a mais forte ou a mais violenta da comunidade.
Quando o resto do grupo sai para caçar e buscar comida, ela recolhe um galho chamuscado no fogo. Com ele, desenha um mamute na parede da caverna. A partir desse instante, as rochas já não são apenas minérios sem vida. Elas se tornam telas, onde brilham desenhos e pinturas, com bisões sendo caçados, humanos fugindo de tigres, mamutes, montanhas, ursos, florestas. Surge ali uma representação de tudo o que aquelas pessoas viveram e enfrentaram até aquele instante.
Então há mais outra quebra de narrativa no livro. Saem de cena as imagens e aparecem pela primeira vez as palavras. E não tinha como ser diferente. Porque ali nasce a nossa linguagem. A arte é criada. A vida é projetada e imaginada. Surgem ideias abstratas e complexas. Começamos a contar histórias e inventar causos. Passamos a não viver mais presos ao presente, mas entortamos a linha do tempo ao registrar o passado e inventar futuros.
E é isso o que nos faz humanos. A nossa capacidade de fabular, criar metáforas, fazer conexões entre coisas completamente diferentes. Ou, como disse Octavio Paz, "o homem é homem graças à linguagem". Está aí a beleza de "Ugh!", um livro que brinca com a linguagem para falar justamente sobre a criação e o nascimento da nossa linguagem.
Mas não apenas isso. Yockteng e Buitrago vão além. Eles nos recordam também que o homem só é homem graças à mulher —e às primeiras contadoras de histórias.