Todo dia na rede social mais perto de você tem algum tratamento milagroso, um protocolo "de Harvard" que a maioria dos cientistas ainda não descobriu, uma solução muito simples para um problema complexo, mas você só vai ter acesso se comprar o curso, se pagar pelo protocolo, se entrar no grupo... Há um dito popular que diz que todo dia sai de casa um malandro e um mané, e quando eles se encontram, dá negócio — a favor do primeiro, claro. Mas esse dito popular não seria válido em uma sociedade com um ordenamento jurídico que impusesse o mínimo de civilidade e transparência nas relações contratuais e sociais, incluindo a proteção aos mais vulneráveis. Portanto, em uma sociedade como a nossa, as pessoas não deveriam ser abandonadas à própria sorte, sem proteção do Estado, suscetíveis a todo tipo de fraude e estelionato.
Recentemente, vimos com indignação a notícia de que duas cientistas que também são divulgadoras científicas foram condenadas a pagar uma indenização a um nutricionista que disseminava desinformação a fim de vender um protocolo de cura de diabetes. O nutricionista produzia conteúdo desinformativo alegando que diabetes é uma doença causada por vermes, parasitas intestinais. As cientistas produziram um vídeo desmentindo a desinformação e explicando quais são as reais causas do diabetes e a fisiopatologia metabólica da doença. No vídeo, as cientistas mostram um print do perfil público do nutricionista, que vende vermífugo para diabetes e descredibiliza o tratamento com base científica, e isso foi usado por ele para mover uma ação contra as cientistas, acusando-as de danos à honra e à imagem.
A decisão judicial estapafúrdia deu razão ao nutricionista e condenou as cientistas a indenizarem o propagador de desinformação por dano moral, pois a menção ao seu perfil público o deixou "triste e envergonhado". Triste e envergonhada está a comunidade científica com uma decisão judicial que desconsidera todo o contexto, uma decisão que ignora a luta constante de cientistas e divulgadores de ciência contra a desinformação e o charlatanismo. Triste e envergonhada está a sociedade ao perceber que não pode contar com o amparo do Estado e da justiça, e que os golpes e estelionatos de redes sociais vão continuar acontecendo, em plena luz do dia. É triste, é vergonhoso olhar para o mundo das redes sociais e perceber que o contrato social tem dificuldade em chegar lá. É por lá que circulam os conteúdos mais nocivos à saúde, conteúdos que desinformam, que geram hesitação vacinal, que provocam o abandono de terapias com eficácia comprovada em busca de tratamentos alternativos sem comprovação científica. É no ambiente de redes sociais que charlatões inventam teorias que não se sustentam com dados e fatos e, no entanto, sequer são punidos pelos conselhos de classes.
A sentença da juíza em defesa da honra e da imagem do charlatão negacionista é uma vergonha para o judiciário brasileiro e deve ser derrubada pelas instâncias superiores. Além disso, tal sentença pressupõe que o direito à honra e à proteção da imagem é superior ao direito à vida de pessoas em tratamento contra o diabetes. O desmentido público feito pelas duas cientistas tem valor público superior ao direito de imagem do propagador de desinformação, pois elas estão fazendo um alerta que ajudará muitas pessoas a não abandonarem seus tratamentos e a não caírem no engodo do negacionista e seus vermes. O conteúdo divulgado pelas cientistas tem claro caráter educativo, é verídico cientificamente e atende ao interesse público. Seu objetivo, antes de tudo, foi proteger a sociedade contra uma desinformação criminosa.
A condenação das cientistas foi um golpe na comunidade científica, mas também na sociedade que anseia por medidas que controlem a infodemia em que vivemos. Essa infodemia, que é caracterizada pelo grande fluxo de informações nas redes sociais, entre as quais muitas são falsas ou imprecisas, não está nem perto de ser contida. Jornalistas de agências de checagens de fatos, uma área do jornalismo que tem colaborado muito na verificação de informações, também podem ter seus trabalhos comprometidos por causa do precedente criado por uma decisão judicial que não considera o contexto de infodemia e a importância do comprometimento com a verdade.
Essa decisão judicial tresloucada é um dos sintomas de que a sociedade não está preparada para lidar com o avanço da desinformação. Por outro lado, aqueles que disseminam desinformação já entenderam quais estratégias funcionam para obter mais alcance nas redes sociais. Além disso, os disseminadores de desinformação compreendem bem as ferramentas jurídicas que podem ser usadas para impedir que seu conteúdo seja desmentido, o que também limitaria o seu alcance. A propagação de desinformação em saúde virou um mercado que, tal como um negócio, tem estratégias de gestão, por meio das quais os profissionais que fazem uso das redes sociais para vender protocolos de tratamentos ineficazes conseguem evitar até mesmo uma punição por charlatanismo.
Utilizando-se de lawfare e assédio jurídico, os profissionais que são desmentidos por jornalistas e cientistas não perdem o alcance e a relevância nas redes sociais. Já os jornalistas e os cientistas que atuam combatendo a desinformação acabam por ter sua liberdade de expressão cerceada pelo medo e por custas processuais. É importante ressaltar que o combate à desinformação é um serviço de interesse público e, por isso, essa censura representa um risco para todos. Uma sentença que não compreende o contexto do processo e que sequer avalia o impacto da decisão judicial na sociedade é uma evidência da falta de competência do judiciário em julgar casos como esse.
Na era da infodemia, a luta contra a desinformação deveria mobilizar toda a sociedade, por meio da exigência de medidas que regulem as redes sociais, controlem o fluxo de informações falsas e dificultem a obtenção de lucro e visibilidade com desinformação. Da mesma forma, o judiciário deveria se preocupar com as táticas dos propagadores de desinformação, impedindo que essas ferramentas continuem sendo usadas para assediar pessoas e organizações que combatem a desinformação. Os conselhos de classes profissionais também não estão atuando publicamente e nas redes sociais contra as condutas antiéticas, e muitas vezes criminosas, dos profissionais que usam a desinformação em saúde na prática profissional.
Dada a ameaça que a desinformação em saúde representa, nem deveríamos estar pensando, calculando, planejando como enfrentar a desinformação. Deveríamos estar organizadamente agindo contra a desinformação e os criminosos que a propagam. Mas aqui estamos, discutindo a arbitrariedade de uma decisão judicial que jogou um balde de água fria nos cientistas e nos jornalistas que lutam contra a desinformação. Enquanto nos empurram vermífugos contra diabetes, deveríamos estar combatendo os vermes do negacionismo que estão se multiplicando, amparados pela leniência judicial e dos conselhos profissionais, e impulsionados pelas redes sociais. O verme do negacionismo se alastra como fogo em mato seco: mas sem deixar um rastro visível de fumaça, serão mortes de difícil contabilização.