O Filho e o Polvo

há 3 dias 1

Férias escolares. É meu turno com Martim. Mas, apesar de ser meu turno com Martim, a quem devo lealdade suprema, a certa altura me sinto mais inclinado a ler "A Trégua", do uruguaio Mario Benedetti. É claro que não irei simplesmente ignorar Martim, até porque está além do meu poder ignorar Martim. Não por incapacidade minha, que tenho todos os recursos espirituais para ignorá-lo, mas porque Martim é uma criança e não se fará ignorável. A marca do adulto é ser ignorável. Fulano é um membro confiável da comunidade quando podemos dizer "Ignoremos Fulano" sem que coisas desagradáveis aconteçam. Não posso dizer "Ignorarei Martim." Não é um membro confiável da comunidade. Só me resta ir com ele para a fantasia.

Balançando numa rede, decidimos que estamos, na verdade, num bote em alto-mar, pois sobrevivemos ao naufrágio. Nunca se erra com o tema do naufrágio. O que mais se pode esperar da vida além disto: sermos dois náufragos em alto-mar? Pouco. (Ler Benedetti.) As aventuras se sucedem: monstros marinhos, avistamento de sereias, caça a tubarões com arpão. Pois Martim, em meio ao desespero do naufrágio, conseguiu trazer para o bote arpão, luneta e forno de assar peixes. E assim se vive a boa vida do mar. Até que avistamos terra. Em terra, a fantasia do naufrágio chega ao fim.

Mas não o meu turno.

Faço então o que todo pai responsável faz: procuro induzir Martim a se distrair sozinho. Operação delicadíssima. Devo me valer de todos os meus anos de dissimulação e cinismo. Nessa empreitada um polvo de plástico me ajuda. O enredo: fuga do Aquário Municipal. Tenho a leve sensação de que estou plagiando o roteiro de algum filme, mas Martim se envolve, deita de barriga no chão, fabula.

Eu me retiro e deito na rede com meu Benedetti. Na rua, o narrador encontra um conhecido, de quem só se lembra vagamente. Escreve que o tal conhecido se esforça "para me reconstruir pormenores e me convencer de que havia participado da minha vida." Como é bom isso de "me convencer de que havia participado da minha vida". Eu não hesitaria em acreditar que alguém participou da minha vida: minha memória é ruim, para além de cinco anos atrás tudo é vago e possível. Sigo lendo.

A certa altura, percebo um silêncio pela casa. Silêncio é mau sinal. O que me ocorre é que Martim abandonou o polvo em fuga e foi perturbar a Mãe. E não é o turno da Mãe. Esse fato é inexorável, absolutamente cabal. Mas é possível que continue brincando em silêncio. Há perigo em conferir: uma criança que brinca sozinha em silêncio é uma criança num frágil encantamento. O mínimo gesto pode rompê-lo. Deixo a rede e vou na ponta dos dedos. Não vejo Martim na sala, mas, alívio!, o encontro no corredor submarino, ainda com o polvo, sussurrando dentro do escafandro. Por um momento não respiro, pois uma banda do meu corpo já se fez visível no corredor. É preciso retroceder essa banda do corpo com todo o cuidado. Mas o pai é macaco velho. Retrocedo. Na rede, minha outra metade é minha de novo. Trégua.

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