Quase 25 anos depois de causar um alvoroço em Taperoá com a ligeireza que ludibriou padres e coronéis, João Grilo volta a ser protagonista do sertão paraibano em "O Auto da Compadecida 2", continuação do filme que se consolidou como um marco para o cinema nacional.
Na nova trama, Grilo volta a Taperoá depois de muito tempo e reencontra o amigo Chicó, que espalhou entre os habitantes a história épica de Grilo, salvo por um milagre anos atrás, quando ressuscitou após levar um tiro de um cangaceiro.
Para o povo, Grilo é uma celebridade eleita por Nossa Senhora Aparecida –que, na pele da majestosa Fernanda Montenegro, o defendeu diante do diabo no primeiro filme e permitiu que ele retornasse à terra para se provar uma boa pessoa.
A história original é uma peça de Ariano Suassuna, escrita com elementos da literatura de cordel. O drama cômico revolucionou o teatro ao levar aos palcos a cultura popular do país, com todas suas tradições religiosas. A adaptação para o cinema, em 2000, foi um sucesso de bilheteria que levou mais de 2 milhões de pessoas às salas de cinema e sagrou Guel Arraes como cineasta.
Fazer uma continuação, então, envolvia altas expectativas. Dessa vez, Arraes não podia contar com o texto de Suassuna e precisou se policiar para evitar uma cópia do primeiro roteiro.
Segundo Arraes, a coragem veio quando se lembrou do que poderia adicionar à trama, com elementos do próprio Suassuna e de farsas medievais estudadas para o primeiro filme. "Os golpes de João Grilo tinham que ser maiores, mais ousados. Desta vez, tem mais emoção, porque com Ariano a emoção é só no céu", diz o diretor.
Chicó, por exemplo, espera pelo retorno de sua amada Rosinha, mas precisa resistir à sedução da voluptuosa Clarabela, vivida por Fabíula Nascimento. Diferente do original, em que as falcatruas de Grilo eram quase como pequenas narrativas separadas que se encavalam, surpreendendo o espectador de forma hilária, "O Auto da Compadecida 2" tem um conflito central que serve de fio condutor para o enredo.
O empresário Arlindo, interpretado por Eduardo Sterblitch, e o coronel Ernani, vivido por Humberto Martins, disputam as eleições para a Prefeitura de Taperoá logo na volta de Grilo, que acaba se envolvendo no conflito e arrasta Chicó com ele.
O tempo, claro, passou também para Matheus Nachtergaele e Selton Mello, que estavam ainda no começo da carreira quando eternizaram Grilo e Chicó, respectivamente, nas telonas. Mello fazia telenovelas dramáticas, e Nachtergaele vivia tragédias no teatro.
"Fomos destinados para a alegria através de ‘O Auto da Compadecida’", diz Nachtergaele, antes de ser interrompido pelo amigo. "Ajudou muito a gente. Somos mais solitários e melancólicos também na vida", brinca Mello, que acabou de voltar dos Estados Unidos, onde divulgava "Ainda Estou Aqui", aposta do Brasil para o Oscar, em que ele interpreta Rubens Paiva.
Em certo momento, o Chicó de "O Auto da Compadecida 2" junta dinheiro para comprar um rádio —o filme se passa no tempo em que o aparelho era novidade. A ambição simples do personagem lembra o desejo do protagonista de Mello em "O Palhaço", filme que ele dirigiu e no qual um artista circense obcecado por ventiladores vaga pelo interior do Brasil.
No longa de 2011, aliás, Mello contracena com Paulo José, morto em 2021 e medalhão de comédias como "Macunaíma", de 1969, "O Padre e a Moça" e "Todas as Mulheres do Mundo", ambos de 1966. "Ele pregava uma simplicidade na atuação que eu levei para vida", diz o ator.
No intervalo entre "O Auto da Compadecida" e a sua continuação, Nachtergale também foi diretor, em "A Festa da Menina Morta", de 2008, além de ter feito dezenas de filmes e novelas e atuado em "Cidade de Deus", outro marco para o cinema nacional. Agora, ele grava a segunda temporada da série inspirada no filme de Fernando Meirelles, em que voltará a viver o traficante Cenoura.
"Eles são os mesmos e novos artistas ao mesmo tempo. Mas esses personagens [João Grilo e Chicó] se apoderaram deles", diz Arraes, segundo o qual os protagonistas são heróis e responsáveis pela catarse do primeiro filme.
"João Grilo usa a sabedoria para sobreviver, um herói que luta por sua vida no dia a dia. O brasileiro se identifica com isso", diz Arraes. Em 2000, seu filme inovou na maneira como o Nordeste era retratado no audiovisual, produzido especialmente no Sudeste. Em "O Auto da Compadecida", o sertão não era só lugar de seca e sofrimento, mas também de alegria, esperteza e comédia.
"O nordestino é muito engraçado, tanto que comediantes como Chico Anysio e Renato Aragão são de lá, mas isso não aparecia tanto no cinema. Eu queria fazer um Nordeste que falava das dificuldades do dia a dia com humor, um pouco como faziam as chanchadas."
Enquanto o primeiro filme foi gravado na cidade de Cabeceiras, na Paraíba, o cenário da continuação foi totalmente construído em estúdio, com o uso de painéis de led. As cores pastéis vivas, somadas às casas tortas e às atuações mais exageradas, dão um tom de fábula à trama, em mais uma tentativa de Arraes de fugir do realismo.
Se o longa de 2000 esteve na leva de produções que marcaram a retomada do cinema brasileiro após o período obscuro do fim da Embrafilme e da crise econômica do governo de Fernando Collor, "O Auto da Compadecida 2" estreia em outro momento importante para a produção nacional.
As comédias "Minha Irmã e Eu" e "Farofeiros 2" levaram milhões de pessoas às salas de cinema, quebrando um jejum de cinco anos. Agora, o drama "Ainda Estou Aqui" já superou os 2,5 milhões de expectadores e tem atraído o interesse internacional sobre a atriz Fernanda Torres.
Segundo Mello, tanto o filme de Walter Salles quanto o de Guel Arraes evocam um sentimento de pertencimento no público, que se vê na tela. "É um prazer se ver, porque o cinema é o espelho de uma nação. ‘Ainda Estou Aqui’ é lindo e doloroso, mas importante para saber de onde viemos e conhecer a nossa história."
Ao mesmo tempo, estão cada vez mais comuns os remakes de histórias brasileiras consagradas pelo público. É o caso da série de "Cidade de Deus" e de "Auto da Compadecida 2", mas também de "Estômago 2" e "Nosso Lar". O fenômeno atinge também na televisão, como provam as novas versões de "Renascer", exibida neste ano, e "Vale Tudo", a principal aposta da Globo para o ano que vem.
"O Brasil está querendo se gostar de novo. Se lamber para se limpar", diz Nachtergaele, sobre uma possível retomada do cinema nacional após a pandemia. Arraes, porém, prefere não comemorar ainda. "Precisamos de regularidade. Uma andorinha só não faz verão."