De todas as figuras icônicas do cinema, o vampiro Nosferatu talvez seja uma das menos sensuais. Nascido no filme de mesmo nome de 1922, o personagem de forma lânguida, dentes e unhas impossivelmente pontiagudos, acompanhado por um exército de ratos podia até perseguir a mocinha, mas definitivamente não era um garanhão.
Talvez seja este o grande senso de novidade da versão de Robert Eggers para a história, que chega aos cinemas na ressaca do Ano-Novo. Em vez de seguir a tendência recente de tratar a figura do vampiro como a de um homem bonitão, um paspalhão ou até um incompreendido, o cineasta aumenta a dosagem de horror e repulsa atrelada originalmente ao monstro.
"É legal ver como o vampiro evoluiu no cinema ao longo dos anos. Tivemos várias versões assustadoras e depois ele foi se tornando mais e mais romantizado, até chegarmos a Anne Rice [autora de ‘Entrevista com o Vampiro’] e Edward Cullen [da franquia adolescente ‘Crepúsculo’], um herói cintilante que não é mais uma ameaça", diz Eggers.
"Tudo bem, é algo bacana, mas eu queria voltar para aquela imagem do vampiro sujo e fétido, a de um cadáver que anda por aí de forma assustadora e intimidadora", continua o cineasta, em seu quarto longa após se consagrar como nome potente do horror em "A Bruxa", de dez anos atrás.
Nem por isso seu "Nosferatu" deixa o sexo de lado. O filme pode até ter fincado suas presas no macabro, mas tem ares de thriller erótico que o amarram ao resto da filmografia curta e celebrada do americano. Eggers, afinal, coleciona simbolismos que fazem do desejo e do corpo temas centrais de sua obra.
Em "O Farol", de 2019, ele enquadrou uma briga de egos masculina em torno da fálica construção náutica que dá nome ao filme. Em "O Homem do Norte", de 2022, também centrou a trama em dois machões, que no ápice ficam completamente nus e erguem suas espadas diante de um vulcão que dispara jatos de lava quente e espessa.
"Nosferatu", por sua vez, é descrito por Eggers como uma história de amor demoníaca envolvendo um triângulo amoroso. Como no marco do expressionismo alemão dirigido por F. W. Murnau, acompanhamos Thomas Hutter, papel de Nicholas Hoult, funcionário de uma agência imobiliária que viaja até a distante Transilvânia para fechar um negócio.
Lá, descobre que seu cliente, um irreconhecível Bill Skarsgard, é uma perigosa criatura das trevas, que bebe seu sangue e quer se mudar para a Alemanha em busca de carne fresca –especificamente, a da própria mulher de Hutter. Interpretada por Lily-Rose Depp, Ellen tem pesadelos há anos com a criatura, graças a uma inexplicável conexão com o sobrenatural.
Como no original, "Nosferatu" é uma versão às avessas de "Drácula", clássico literário de Bram Stoker. Sem deter os direitos autorais para adaptar o livro nos anos 1920, Murnau mudou nomes de personagens e pequenos detalhes da história, o que não impediu o espólio do irlandês de ir aos tribunais.
Eggers faz jus ao romance vitoriano, escandaloso por suas entrelinhas costuradas pelo desejo carnal da besta pela mocinha, e também a adaptações cinematográficas como a de Francis Ford Coppola, em que todos os personagens parecem estar mortos de tesão.
"Eu busquei um equilíbrio, porque tenho muito respeito e admiração pelo ‘Nosferatu’ original e não queria simplesmente fazer mais um ‘Drácula’. No fim precisei seguir meus instintos e confiar no que estava fazendo", afirma o diretor.
O longa tem até mesmo uma cena de nu frontal masculino, rara em produções desse porte. Nela, o vampiro flutua sobre seu caixão com o pênis pálido e coberto por feridas à mostra. Ele encara Thomas, todo mordiscado pelo sangue que lhe foi chupado, antes de penetrar os sonhos de Ellen num rompante de desejo e ira.
Ela não é tão vítima assim, porém. Essa criatura que invade seus pensamentos, por mais repugnante que seja, exala uma paixão ardente que falta em seu marido, um homem dedicado porém medíocre. Há certo prazer necrófilo pela forma que seus pesadelos tomam.
"Ela não precisa de um exorcismo, mas do marido", brada sua amiga, atordoada pela visão de Ellen se contorcendo na cama, com os olhos revirados e os gemidos de êxtase ecoando pelo quarto. Mal sabe ela que, em seus delírios noturnos, quem a visita é o amante das trevas, e não o almofadinha com quem casou.
Consentimento, em "Nosferatu", não é um termo verbalizado, mas está presente à sua maneira. Por mais que o monstro invada sonhos sem permissão, ele deixa claro a Thomas que só pode possuir Ellen se, primeiro, ele assinar um termo e, depois, se ela se entregar por livre e espontânea vontade.
Em paralelo, o vampiro condena a família de comercial de margarina que acolhe Ellen na ausência de Thomas. Burgueses e donos de uma felicidade entorpecedora, os personagens de Emma Corrin e Aaron Taylor-Johnson veem os seus caindo um a um, numa espécie de mensagem antimoralista, pode-se dizer.
As cruzes que cobrem sua bela casa são ofuscadas pelas sombras conforme Nosferatu faz sua cidadezinha de refém, sem que Eggers caia na tentação de transformar o filme numa coleção de imagens excessivamente escuras, como várias produções recentes que forçam o espectador a franzir os olhos.
O americano volta a trabalhar com o diretor de fotografia Jarin Blaschke, que conferiu aos seus três filmes anteriores visuais fortes e movimentos de câmera que têm algo a acrescentar à história. Em "Nosferatu", ele faz o espectador deslizar junto às forças místicas que profanam a vidinha dos personagens, buscando a criatura no chiaroscuro dos cenários.
Estes são quase todos práticos. Eggers dispensou o uso de CGI, a computação gráfica, sempre que possível. Lobos e ratos correm em carne e osso por florestas e ruas de pedra também reais. Já o castelo de Nosferatu existe, e fica na Transilvânia, mas uma renovação em seus interiores forçou a equipe a reconstruir o opulento mausoléu de pedra em estúdio.
"É muito mais fácil trabalhar dessa forma, porque se temos que criar um mundo em nossa cabeça, parte da energia do ator é gasta nisso", diz Willem Dafoe, que interpreta um personagem inédito, um professor expulso da universidade de medicina por causa de suas ligações com o ocultismo.
"Se chegamos num set de filmagem e ele está todo lá, completo, aquele ambiente vai te dizer o que fazer e como agir. Há uma lógica própria em cenários reais que te dá motivação", continua o ator, que mergulhou fundo no folclore vampiresco e no esoterismo sob orientação de Eggers.
Há muito empenho neste que é o projeto dos sonhos de Eggers. Com o prestígio que acumulou, o diretor conseguiu enfim tirar os planos de uma década do papel, se distanciando respeitosamente de Murnau e da versão de Werner Herzog, de 1979.
Como as garras de Nosferatu, que numa câmera aérea vão se apossando da cidadezinha de Wisborg, Eggers agora toma para si um pedaço importante do cinema de horror.