Noite paulistana fez brilhar o funk e enfrentou patrulha do poder público neste ano

há 2 dias 1

A disputa entre a Prefeitura de São Paulo e a noite paulistana está em alta há alguns anos, desde quando a gestão Dória passou a vetar eventos que, até então, aconteciam nas ruas da cidade.

Neste ano, festas e coletivos fizeram esforços para resistir aos cercamentos da gestão, mas o futuro da noite paulistana –que virou um ponto de atenção para o mundo todo, de onde se exportam DJs e sons– aponta cada vez mais para casas fechadas.

Para a comemoração de final de ano da festa Mamba Negra, que em 2024 completou 11 anos de existência, a organização anunciou um evento de graça e aberto no Tendal da Lapa no dia 14 de dezembro. Os planos mudaram um dia antes da festa, quando os organizadores informaram que a gestão de Ricardo Nunes havia cancelado o evento citando um "risco de aglomeração". A festa destacou que entendeu o cancelamento como uma "decisão política contra a cultura LGBTQIAPN+ independente".

A segurança no centro da cidade também é preocupação. Algumas festas até conseguiram realizar eventos na rua neste ano. A Vampire Haus, por exemplo, cuja última edição do ano aconteceu neste sábado (21), debaixo do Viaduto da Liberdade, reforçou o recado de atenção com os pertences e a dica de chegar e sair somente com motoristas de aplicativo, evitando o caminho a pé até o metrô.

Essa atmosfera acabou favorecendo a abertura de clubes em andares mais altos do centro. Espaços como o rooftop no Edifício Martinelli, a nova balada Ephigenia e o bar Matiz, abertos entre o fim de 2023 e o início de 2024, formam espécies de "ilhas" onde o público tem uma chance de experienciar, de certa forma, o centro da cidade, aproveitando a vista em vez de ocupar as ruas.

Fora do centro da cidade, o sucesso é de casas e espaços em lugares mais isolados, cercados por depósitos ou fábricas, para evitar as reclamações de barulho. A Fabriketa, no Brás, segue sendo a queridinha de festas como Carlos Capslock e Gop Tun. O Komplexo Tempo e o Teia Klub, espaços irmãos na Mooca, também receberam festas como DGTL e a Boiler Room.

A festa inglesa, inclusive, esteve em São Paulo duas vezes neste ano –um testemunho do poder da noite paulistana internacionalmente. Com DJs como Slim Soledad, Mu540 e Mochakk e grupos como Teto Preto escalados para festivais internacionais ao longo do próximo ano, a música eletrônica da cidade atrai cada vez mais produtores e curadores ao redor do mundo.

Isso é especialmente verdadeiro para o funk paulistano, que vive um dos melhores momentos de sua história. Um dos eventos da Boiler Room foi completamente dedicado ao gênero, reunindo DJs que trabalham com a sonoridade de diversas maneiras. Como o DJ Blakes, conhecido por tocar em bailes de favela como o Baile da Dz7 e o Baile do Helipa, e o DJ Bassan, que se apresenta em festas mais centrais. Uma compilação lançada pela rádio inglesa NTS em março reuniu 22 faixas de DJs e MCs da cidade.

Ao mesmo tempo, os bailes continuam enfrentando forte repressão policial e governamental, nas mãos de figuras como o vereador Rubinho Nunes, que se elegeu com mais de 100 mil votos sob a promessa de acabar com "pancadões" pela cidade. O vereador posta vídeos em sua conta no YouTube acompanhando operações policiais em bailes de favela. Após uma operação feita em agosto, o Baile do Bega, em Paraisópolis, pausou suas atividades.

Nessa toada, o funk também migra para espaços mais centrais para escapar da repressão, em festas itinerantes como a Submundo 808 e casas como a Arena Show, na Bela Vista.

Junto dele, outros ritmos cresceram nas pistas de São Paulo durante o ano. As tendências parecem apontar para os extremos. Ao mesmo tempo em que se ouve muito funk automotivo e hard techno, gêneros de alta velocidade e intensidade, 2024 também foi um ano de evidência do house, tipo de música eletrônica com mais balanço e groove. Festas específicas do ritmo, como a Novo Affair, caíram no gosto do público paulistano.

Seguindo tendências globais, também foi possível ver exemplos do que a mídia internacional tem chamado de "latin club music" –ou música de clube latina, um termo guarda-chuva que contempla estilos musicais eletrônicos da América Latina– em pistas da cidade ao longo do ano. Os DJs Nick León e Lechuga Zafiro, parte do importante selo colombiano TraTraTrax, se apresentaram respectivamente no Festival Não Existe, da Gop Tun, e na Mamba Negra neste ano.

Numa época em que os festivais de música estão cada vez maiores e mais genéricos, apostando em nomes óbvios que arrastam multidões, os festivais de música eletrônica da cidade trouxeram curadorias muito mais interessantes e arriscadas.

Até mesmo o Tomorrowland, festival gigante que voltou a acontecer em São Paulo desde o ano passado, entregou um line-up que tinha, além de suas usuais escolhas da música eletrônica comercial, artistas mais lado B, como os DJs britânicos Bonobo e Cormac. Aliás, a música eletrônica comercial vai bem em São Paulo, com megafestivais como o próprio Tomorrowland, Só Track Boa e Keinemusik esgotando ingressos na cidade.

Mas, para além de dançar, 2024 também foi um ano de refletir sobre a noite paulistana. A morte de Liana Padilha, voz do duo eletrônico NoPorn e figura importante para o underground da cidade, desbloqueou um turbilhão de memórias e lembranças de quem viveu um período especial nas baladas da cidade nos anos 2000.

Camilo Rocha contou parte desta história em seu livro de estreia "Bate Estaca", lançado em julho deste ano; e Erika Palomino também lançou uma reedição de seu "Babado Forte", que trata da mesma época por outros ângulos.

Neste fim de ano, o livro "Vidacobra", da fotógrafa Ivi Maiga Bugrimenko, que registra a vida noturna underground de São Paulo há uma década, também chega às livrarias. É um dos primeiros registros dessa época atual da noite paulistana –uma das mais fulgurantes que já tivemos.

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