Para Artur Avila, um dos maiores expoentes científicos brasileiros e o mais aclamado matemático do país, ninguém deveria sentir orgulho por não saber matemática. "É como se fosse uma desculpa. É como se alguém dissesse que não sabe ler o menu de um restaurante porque é ‘de exatas’."
"Acho que o caminho para tirar essa aura impenetrável é não matar a curiosidade, é permitir que as pessoas explorem e brinquem com a matemática, especialmente desde jovens."
Dez anos depois de ganhar a Medalha Fields, honraria distribuída apenas a cada quatro anos e para quem tenha feito realizações extraordinárias antes dos 40 anos de idade, Artur Avila acumulou a função de ser a "cara" da matemática no Brasil e representante do país em eventos no exterior.
Avila, 45, atualmente é professor titular na Universidade de Zurique (Suíça) e permanece ligado ao Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), no Rio de Janeiro, na posição de pesquisador extraordinário.
Ainda não tem alunos no país, mas diz estar aberto a conversas e co-orientações. Ele coleciona discípulos de diferentes partes do mundo. "É fundamental que cada estudante desenvolva a sua própria maneira de fazer matemática. Meu papel não é o de tentar criar cópias minhas. Valorizo estudantes independentes que busquem o seu caminho", diz. O próximo passo é ir à China e desvendar a potencialidade matemática do país asiático.
Em entrevista à Folha, ele, o único latino-americano a receber a Medalha Fields, fala sobre o panorama brasileiro e sobre os problemas matemáticos que vem enfrentando, sempre dentro da seara dos sistemas dinâmicos, aqueles que têm seu estado variando ao longo do tempo, sendo regido por equações matemáticas, e que descrevem uma enormidade de fenômenos, sejam eles do mundo físico ou entidades matemáticas cuja exploração seja interessante o bastante.
"Nós, matemáticos, estamos acostumados a falhar repetidamente. Mas aprendemos a aceitar essas falhas como parte do processo, sabendo que, eventualmente, algo dará certo."
O que mudou na sua vida depois que ganhou a Medalha Fields?
Primeiramente, no aspecto matemático, meu trabalho continua na mesma direção geral. Sempre há uma mudança natural nas atividades de pesquisa, à medida que novas questões vão surgindo e a própria matemática evolui. Mas a Medalha Fields não causou maiores mudanças na minha forma de fazer pesquisa. O que mudou foi o alcance: hoje tenho acesso a mais pessoas, mais estudantes e a várias situações que me permitem trabalhar com gente extremamente talentosa que quer aprender comigo. Antes, eu já tinha um pouco disso, mas agora vai muito mais longe.
E como está sua relação com o Brasil?
Embora eu tenha me mudado para Zurique em 2018, continuo mantendo uma conexão próxima com o Brasil, especialmente por meio do Impa. Participo de eventos representando a matemática no Brasil. Isso ajuda a mostrar para um público maior, e especialmente para potenciais jovens talentos, que é possível fazer matemática de alto nível no Brasil.
Galileu dizia que o livro da natureza foi escrito na linguagem da matemática. E Carl Sagan dizia que vivemos numa sociedade profundamente influenciada pela ciência e pela tecnologia que não entende quase nada de ciência e de tecnologia. Resolver esse problema passa por cativar as pessoas com a matemática? Qual seria, na sua opinião, o caminho para tirar a aura de impenetrável que ela tem?
As pessoas têm uma curiosidade natural, mas em algum ponto essa curiosidade sobre a matemática parece ser sufocada. Eu considero que não é saudável as pessoas dizerem que não sabem nada de matemática e se orgulharem disso, como se fosse uma desculpa. É como se alguém dissesse que não sabe ler o menu de um restaurante porque "é de exatas". Isso não deveria ser motivo de orgulho; todos deveriam ter um certo nível de conhecimento matemático, algo que é fundamental para a cidadania.
Acho que o caminho para tirar essa aura impenetrável é não matar a curiosidade, é permitir que as pessoas explorem e brinquem com a matemática, especialmente desde jovens. As olimpíadas de matemática, por exemplo, começam de maneira lúdica, mas podem levar a um interesse mais profundo. Mas de fato a matemática demanda esforço para ser apreciada, você não entende olhando, precisa realmente fazer —exercícios, por exemplo.
Outro ponto interessante é a percepção pública da matemática. As pessoas ouvem falar sobre descobertas recentes em física, química, biologia, e também tem o Prêmio Nobel, que uma vez por ano coloca nos holofotes descobertas recentes nessas áreas. Enquanto o contato que quase todos têm com a matemática acaba no máximo na matemática do século 17.
Como sente que é seu papel atualmente no sentido de mostrar que um matemático não é um senhorzinho com cabelo branco? Sua colega, também medalhista Fields, Maryna Viazovska, já falou à Folha sobre a importância desses símbolos de representatividade.
A Medalha Fields trouxe uma visibilidade maior, e, com ela, a possibilidade de representar os matemáticos para um público maior. E acho isso algo importante, quase todo mundo consegue imaginar um físico moderno, como o Einstein, e isso serve para mostrar que a física é uma ciência viva e também humana. No caso da Maryna Viazovska, sendo ucraniana, ainda tem um papel simbólico maior, devido à guerra.
Em outra direção, estive recentemente na China, e aproveitei para tentar estimular o desenvolvimento de uma rede de colaboração com o Brasil. A China vem investindo fortemente em pesquisa e tem um capital humano imenso, então é interessante sermos capazes de atrair estudantes de lá e também poder enviar estudantes para trabalhar nas instituições chinesas.
Pode contar sobre o que tem trabalhado atualmente?
Nos últimos anos, continuo me concentrando em sistemas dinâmicos, explorando três direções principais. Uma delas envolve questões clássicas em mecânica e equações diferenciais tradicionais. Também estou trabalhando em dinâmica complexa [com números complexos], tentando entender como a geometria de objetos fractais, como o conjunto de Mandelbrot, influencia a dinâmica em dimensão mais alta. Os fractais que aparecem nessa análise, além de serem esteticamente impressionantes, aliam complexidade e ordem que podem ser em parte compreendidas, o que permite surpreendentes aplicações a outras áreas da matemática.
No conjunto de Mandelbrot, há uma área conhecida como o "Vale dos Elefantes", que é uma parte particularmente interessante onde podem ser vislumbrados elefantes, aparentemente em procissão. Essa estrutura pode ser em parte compreendida, sabendo-se que é responsável pela formação de outras estruturas mais complicadas. E em dimensão maior, quando consideramos a versão complexa do atrator de Hénon, essas estruturas interagem com outros fractais, produzindo uma variedade de efeitos dinâmicos.
Além disso, estou investigando a dinâmica quântica em modelos de matéria condensada. Pode-se pensar que o objeto de estudo é a evolução de um sistema onde há uma vasta rede de átomos, mas que é perturbado por impurezas. Um dos focos desse trabalho é entender a mudança das propriedades desses sistemas quando se mudam a natureza das impurezas, e particularmente questões de localização e deslocalização da função de onda. São questões relacionadas a conceitos físicos, como as características de metais e de isolantes elétricos.
Matemática não é linguagem, mas ideias e fatos, mas uma ideia e fatos soltos também não podem ser qualquer outra coisa?
Existe um universo de objetos matemáticos que são visualizados por matemáticos como as coisas do mundo real. Esses objetos têm uma existência independente da maneira como os descrevemos, mas para comunicar essas ideias, precisamos de uma linguagem. Assim, embora a matemática não seja uma linguagem em si, ela envolve descrever ideias que existem por si mesmas, independentemente de como as expressamos.
Naturalmente, em aplicações como na física, consideram-se objetos que existem no mundo real, e a matemática entra na descrição desses objetos. Ainda assim, as ideias e os fatos matemáticos formam um universo que existe por si só e que também precisa ser descrito para ser compreendido.
É interessante aproveitar para clarificar no que consiste realmente a matemática. Não é ficar resolvendo contas cada vez mais difíceis, é uma exploração profunda de ideias novas. A criatividade é fundamental, claro que aliada à técnica, assim como nas artes, por exemplo.
Mas há esse preconceito, é comum escutar as pessoas oporem matemática à criatividade. Em todo caso, seria bom no mínimo que fosse mais difundido que a matemática está constantemente evoluindo e que há muito a ser descoberto.
Como é sua rotina? Qual é o processo para resolver esses problemas?
A rotina de um matemático é peculiar. No início, pode ser um pouco deprimente, pois estamos acostumados a falhar repetidamente. Mas, ao longo do tempo, aprendemos a aceitar essas falhas como parte do processo, sabendo que, eventualmente, algo dará certo. Muitas vezes, o cérebro trabalha em segundo plano, mesmo quando não estamos conscientemente pensando no problema. Eu gosto de caminhar para clarear as ideias, e quando algo surge, volto para o papel e a caneta para testar.
O objetivo é entender tão bem o problema que você quase não precisa fazer muitas contas; as verificações técnicas podem ser curtas, mas claro que com uma necessidade enorme de precisão. Sou mais adepto de tentar entender realmente a razão de que o que estamos tentando demonstrar deve ser verdade, de uma maneira tão clara que as verificações técnicas sejam praticamente um detalhe.
E como é sua relação com seus alunos?
É fundamental que cada estudante desenvolva a sua própria maneira de fazer matemática. Meu papel não é o de tentar criar cópias minhas. Valorizo estudantes independentes que busquem o seu caminho. Essa abordagem tem funcionado, vários dos meus alunos já têm uma produção científica bem reconhecida.
Como avalia o panorama da matemática no Brasil?
É impressionante, especialmente considerando nosso desenvolvimento relativamente recente. Nos últimos 70 anos, o Brasil tem visto um progresso significativo em matemática, independentemente das crises políticas e econômicas que o país enfrentou. Isso é uma evidência de que temos lideranças matemáticas de alta qualidade que conseguiram criar caminhos que funcionaram.
A matemática tem uma vantagem particular: ela não exige laboratórios caros ou insumos sofisticados. O que precisamos são pessoas qualificadas e um ambiente propício para a pesquisa. Por outro lado, a falta de uma política de ciência de Estado, que vá além dos governos, ainda é um grande desafio. A ciência precisa ser um projeto de longo prazo, com estabilidade, para que possamos colher resultados sólidos.
Como avalia o impacto de iniciativas como as olimpíadas de matemática? Temos uma nova safra de bons matemáticos?
As olimpíadas têm múltiplas funções. Elas não apenas descobrem novos matemáticos, mas também motivam jovens a terem contato com o universo acadêmico, mesmo que eles sigam outras carreiras, como engenharia ou física. Com o tempo, esse programa se expandiu e se tornou mais inclusivo.
Lembrando que essa relação do Impa com as olimpíadas já é importante há bastante tempo, e de uma certa forma foi determinante na minha trajetória.
O sr. vai falar para jovens do ImpaTech [programa de graduação do Impa] na próxima semana. Que recado quer deixar para eles?
Eu gostaria de mostrar a eles como a matemática é realmente na prática, o que significa pensar em matemática, e como isso tem a ver com o que eles aprenderão. É totalmente normal os jovens não terem essa perspectiva nesse momento da formação. Claro, também quero passar a mensagem de que vão precisar investir muito tempo e dedicação, mas uma hora o resultado vem, e vale a pena.
Vou também compartilhar algumas das lições que aprendi ao longo do caminho, algumas coisas que só percebi na prática, e que talvez torne o percurso deles um pouco mais fácil. E lembrar que a matemática é importante de maneira mais geral na vida e no exercício da cidadania.
Raio-X
Artur Avila Cordeiro de Melo, 45
Professor titular de matemática no Instituto de Matemática da Universidade de Zurique (UZH) e pesquisador extraordinário do Impa.
Doutor em Matemática pelo Impa (2001) com pós-doutorado no College de France (2003). Atuou como pesquisador no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, 2003-2018), na França, onde também foi diretor de pesquisa.
Em 2014, tornou-se o primeiro latino-americano a receber a Medalha Fields, considerado o "Nobel da Matemática", por seu trabalho na área de sistemas dinâmicos e teoria espectral. Também recebeu os prêmios Salem (2006) e da Sociedade Matemática Europeia (2008).