Não franzo a testa desde 1987, diz médica que descobriu o uso cosmético do botox

há 1 dia 2

A oftalmologista canadense Jean Carruthers, 76, tinha pouco mais de 35 anos em 1983, já era casada com o dermatologista Alastair Carruthers (morto em agosto, aos 79) e mãe de três filhos pequenos quando um dia, em seu consultório, levou uma bronca de uma de suas pacientes.

"Ela ficou brava porque eu não injetei [toxina botulínica] na testa dela. Ela estava sendo tratada por causa das contrações involuntárias dos músculos das pálpebras. Não entendi o motivo na hora, mas ela me explicou: 'Quando você injeta na minha testa, fico com a expressão descansada’", lembra Carruthers.

De noite, em casa, enquanto jantava com os filhos e o marido, comentou o ocorrido e sugeriu que estudassem mais a fundo a toxina botulínica.

O casal iniciou os estudos naquele mesmo ano, e em 1987 começou a oferecer o tratamento no consultório de cosmética, área na qual Carruthers passou a atuar depois de fazer uma adaptação de seus estudos e uma certificação em cirurgia cosmética nos EUA.

A dupla de médicos canadenses, no entanto, não conseguiu patentear sua descoberta.

"Tentamos com um escritório de advocacia em Vancouver e outro em Toronto, mas eles disseram: ‘Isso não é tão diferente do tratamento para o blefaroespasmo benigno, o nome científico para espasmos involuntários, então não é patenteável.’ Hoje, sabendo o que sei, teria continuado com outros advogados em cidades como Chicago ou Nova York", afirma a médica.

A primeira patente do botox foi feita pela multinacional Allergan. Em 2020, a empresa foi adquirida pela AbbVie, uma corporação maior ainda. Mas nenhum medicamento, tratamento ou aparelho dessas companhias jamais atingiu o nível de popularidade do botox.

Pergunto a Carruthers se sente rancor por não ter conseguido patentear sua maior descoberta, e ela responde, com muita serenidade: "Não franzo a testa desde 1987, isso ajuda bastante".

A senhora realmente não ganha nenhum dinheiro cada vez que alguém usa o botox?
Não. Mas eu e meu marido conseguimos fazer uma patente para o tratamento do que se chama de "bigode chinês", que faz os cantos da boca virarem para baixo, dando uma impressão de infelicidade. A Allergan comprou essa patente de nós.

Sabia que isso poderia acontecer —descobrir algo tão revolucionário e outra pessoa ficar bilionária?
Eu era uma jovem médica muito idealista, nem imaginei o quanto isso poderia ser bem-sucedido. Também sinto que tive o enorme privilégio de, por não ter a patente, poder continuar meu trabalho de cientista.

Publiquei muitos estudos nos últimos 40 anos, e eles ajudaram muitas pessoas ao redor do mundo. E ganhar bilhões de dólares parece muito desejável, mas pode não trazer tanto benefício quanto o impacto que eu tive.

E qual é o problema essencial das rugas? Por que não gostamos delas?
É uma parte natural do envelhecimento, acelerada pela exposição ao sol. É um processo muito injusto porque, para nós mulheres, começa aos 24 ou 25 anos. Para os homens, só aos 45. Nossa pele começa a perder colágeno e elastina no final da casa dos 20 anos e ao longo dos 30 e 40. Assim, à medida que envelhecemos, a pele fica mais fina.

O colágeno é como o "couro" da pele. A elastina é uma molécula elástica que fica paralela às fibras de colágeno e também tem pequenas ramificações que mantêm a pele firme. Quando você danifica as fibras de elastina, como ao se expor ao sol sem proteção, a pele deixa de ser puxada de forma uniforme e começam a aparecer os "vincos".

Não gostamos das rugas porque elas nos fazem sentir que não refletimos como nos sentimos por dentro. Elas podem nos fazer parecer velhos, cansados, infelizes, quando na verdade estamos cheios de energia e alegria. É difícil conviver com isso.

Por que é tão diferente para homens e mulheres?
Esta é uma daquelas perguntas para a qual não há resposta simples. Mas é assim. O fato é que há algo mágico nos neuromoduladores, como a toxina botulínica, especialmente para mulheres. Acho que isso nivela o campo com os homens, que só começam a envelhecer duas décadas depois de nós.

Começamos a ter remodelação dos ossos faciais mais cedo, fazendo com que as sobrancelhas desçam, as pálpebras caiam, o formato do rosto mude de oval para quadrado.

A toxina é mágica porque permite levantar as sobrancelhas, os olhos, os cantos da boca e até o pescoço. Você pode rejuvenescer uns sete ou oito anos. E isso continua. Fizemos estudos, e muitos colegas brasileiros participaram, mostrando que a redução da idade aparente persiste e até melhora conforme você continua usando o produto. Ele não só te devolve a aparência que você tinha como também a mantém.

Vamos continuar vendo novos avanços nesta área?
As novidades não param de surgir. Por exemplo, acabamos de ter a aprovação do uso de toxina botulínica para tratar o platisma [músculo mais superficial do pescoço] nos Estados Unidos, em outubro.

A senhora acha que pelo fato de sermos um país tão ensolarado percebemos, no Brasil, os danos do sol na pele mais cedo que em outras populações?
Tenho certeza que sim. O clima do Brasil, definitivamente, é melhor que o nosso. Mas estamos todos pagando pelos pecados da epidemia mundial de bronzeamento que começou nos anos 1920, por culpa de Coco Chanel.

Ela voltou de Deauville, de férias, e trouxe o conceito do bronzeado saudável. Ela era revolucionária. Você se lembra dos longos colares de pérolas que ela usava? Mas ela entendia de moda, não de saúde. Agora sabemos que não há nada de saudável em um bronzeado.

No Brasil da minha infância, nos anos 1970/80, ter um bronzeado no fim das férias era um sinal de status.
Aqui também! Eu usava papel-alumínio, óleo de bebê e lâmpadas de bronzeamento. Só percebi o impacto disso quando estava no terceiro ano de medicina e um professor de dermatologia, dr. Stuart Madden, me disse: "Srta. Elliott —meu nome de solteira—, se continuar tratando sua pele assim, quando você tiver 50 anos vai parecer uma ameixa seca".

Aquilo me chocou. Eu ainda acreditava no conceito de bronzeado saudável. Foi ali que comecei a aprender sobre protetor solar, chapéus e, mais importante de tudo, sombra.

O Brasil é o segundo país que mais usa botox no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Qual a sua explicação para isso?
Acho que há algo relacionado à mentalidade dos brasileiros, à cultura brasileira. Vou usar alguns dados. Em 2002, foi feita uma pesquisa na França, no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e no Brasil. A pergunta era: "Cuidar da sua aparência é muito ou relativamente importante para você?".

Cerca de 70% a 75% das pessoas em todos esses países responderam "sim". No Brasil? Noventa por cento!

Acho que há um entendimento cultural de que, se você está bem consigo mesmo, você se torna uma pessoa melhor e faz mais pelas pessoas ao seu redor. E acho que isso é algo muito positivo. Os brasileiros têm a mente muito aberta.

Ainda veremos novos usos para a toxina botulínica?
Vou te dizer uma grande área onde penso que isso pode acontecer. Acho que a psicologia será um grande ganho para os neuromoduladores, especialmente na depressão.

Com injeções na região da testa, é possível influenciar a amígdala, que está na parte frontal do cérebro, no giro temporal. É como um "sensor de más emoções".

Se você se sente exausto, deprimido, ansioso ou envergonhado, um exame de ressonância magnética funcional mostrará que a amígdala está consumindo muito mais oxigênio. Ao injetar botox ou outros neuromoduladores na testa, você "desativa" o funcionamento da amígdala.

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Temos visto muitos exageros no campo da estética. Como evitar isso?
Acredito que a maioria das pessoas quer parecer uma versão natural e melhorada de si mesma. Na minha experiência, isso sempre se alcança corrigindo menos, não mais. No momento em que você exagera no tratamento, isso fica muito óbvio e até constrangedor. Não ajuda ninguém.

Claro, há cerca de 10% a 15% das pessoas que desejam exageros —bochechas aqui em cima, lábios exageradamente volumosos. Elas realmente amam isso. Mas não sei se continuam com isso para sempre.

Eu tento educar meus pacientes para entender que queremos deixá-los com uma aparência fantástica, mas o mais natural possível. Por isso, quando faço consultas com novos pacientes, geralmente as faço online. Preciso entender o que eles querem.

Se percebo que a pessoa quer um visual muito exagerado, sugiro que procure outra solução ou outro profissional, porque simplesmente não gosto de exagerar nos tratamentos.

Você acredita que o fato de passarmos muito tempo online hoje em dia, em reuniões em que vemos nossos próprios rostos muito mais do que antes, colabora com isso?
Com certeza. Durante a pandemia, surgiu o termo "dismorfia do Zoom". Foi cunhado em Boston, e estudos em Stanford revelaram que em 40% do tempo em uma chamada de Zoom estamos olhando para nós mesmos. É um número chocante.

Isso mudou completamente o perfil dos pacientes de estética na América do Norte. Por exemplo, muitos homens passaram a se incomodar com a própria aparência, algo que antes não era tão comum, porque não costumavam se olhar tanto quanto as mulheres. Mesmo depois da pandemia os pacientes masculinos continuam aparecendo. É engraçado como isso mudou o comportamento.


RAIO-X

Jean Carruthers, 76
Médica oftalmologista especialista em procedimentos cosméticos não invasivos e em cirurgias cosméticas. É autora de mais de 300 publicações científicas, 70 capítulos de livros e 9 livros didáticos. É professora no departamento de oftalmologia da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver (Canadá).

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