O Estúdio Mosfilm, que existe desde que a Rússia era União Soviética —na prática, entre Josef Stálin e Vladimir Putin—, completou um século de vida neste ano. A décima Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, que acontece na Cinemateca Brasileira até 24 de novembro, celebra a lendária trajetória dessa que é a maior companhia cinematográfica europeia.
Além da exibição de 20 longas, o evento oferecerá ao público, em outros lugares, atividades como oficinas, workhops, feira gastronômica e até um curso de introdução ao idioma russo.
O recorte desta edição compreende um período entre 1924 e 2012, ou seja, entre "A Greve", primeiro longa de Sergei Eisenstein sobre uma greve operária na Rússia czarista, e "Tigre Branco", de Karen Shakhnazarov. Este último, um eficiente filme de gênero, ambientado na Segunda Guerra Mundial, e que junta o sobrenatural e um cinema bastante físico.
Já "A Greve" é uma carta de apresentação sobre a montagem intelectual que marcaria o cinema de Eisenstein. Ele traduz elementos das vanguardas europeias dos anos 1920 e do teatro moderno russo, e radicaliza uma edição que pensa no encadeamento de elementos distintos para assim gerar um discurso. Isso fazia do espectador alguém mais ativo junto à experiência do filme.
"O Encouraçado Potemkin", de 1925, é seu mais famoso filme, mas é "A Greve" quem milita mais forte —e com certo humor e escárnio— contra as elites do capital. A lembrar que, da mesma geração de vanguarda que Eisenstein fez parte, houve também Lev Kuleshov, teórico que refletiu sobre o efeito do encadeamento de fragmentos na montagem cinematográfica.
Enquanto isso, a comédia "As Aventuras Extraordinárias de Mr. West no País dos Bolcheviques", de 1924, zombeteia do maior rival geopolítico, Estados Unidos, numa chave que, ironicamente, tem a mesma energia das comédias hollywoodianas daqueles anos.
A guerra, aliás, será um tema bastante presente na programação. Um assunto bem recorrente no país, das duas grandes guerras mundiais e o Afeganistão no século 20 ao atual conflito na Ucrânia. Não à toa, o documentário ensaístico de Mikhail Romm, "O Fascismo de Todos os Dias", de 1965, pega material de propaganda do Terceiro Reich para historicizar analiticamente o horror do nazismo.
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E, nesse tema, nenhum é mais forte que "Vá e Veja", de 1985. O diretor Elem Klimov revela, em tom de (anti)fábula, a brutalidade da guerra através de digressões que levam o filme a um quase surrealismo. Ele junta o sensorial e o extremamente físico, tal ocorre na brutal sequência em que os nazistas exterminam uma aldeia bielorrussa.
Uma espécie de deslocamento físico e mental que habita com ainda mais força o cinema de Andrei Tarkóvski. Imperdível, "O Espelho", de 1975, é mais outro de seus filmes a transitar entre instâncias, desmonte de tempos, devaneios, amores e angústias. Aqui, personagens distintos habitam um mesmo ator, memória e presença, razão e instinto, natureza e ciência. O espelho, em si, não revela o aparente, e sim a imagem outra da vida, do tempo e do mundo.
Importante lembrar o quanto a política marcou a cinematografia do país. Enquanto o cinema de vanguarda dos anos 1920 gerava uma postura ativa e revolucionária do espectador, o Realismo Socialista na era Josef Stálin reiterava uma verdade confortada, senão acrítica, além de escantear Eisenstein —que iria filmar no México e desgraçar a vida daquele que talvez seja o maior estoico cineasta do país, Dziga Vertov.
Havia brechas, claro, inclusive no governo retrógrado de Leonid Brejnev nos anos 1960. Mas nada como um filme bastante ilustrativo dos melhores tempos, no caso o governo de Nikita Kruschev, como o extraordinário "Quando Voam as Cegonhas", dirigido por Mikhail Kalatozov em 1957. É um drama romântico que conta com uma câmera que passeia livremente pelos espaços, extraindo geometrias típicas do cinema de arte e ora indo ao encontro íntimo com os rostos e corpos dos personagens. Há algo nele que sugere o que nouvelle vague francesa faria apenas anos depois.
Entre "Circus", um musical à la URSS feito por Grigori Aleksandrov em 1936, e dramas como "A Balada do Soldado", rodado por Grigori Chukhray em 1959, e "Moscou Não Acredita em Lágrimas", de 1979, dirigido por Vladimir Menshov (ambos cultuados nas videolocadoras no Brasil dos anos 1980), a grade ainda conta com o especial filme de Larisa Sheptiko.
"Asas", de 1966, acompanha uma exímia ex-piloto de caça na 2ª Guerra que só agora foi abatida, mas pela vida comum, lidando com o vazio da vida comum e sonhando em voltar às nuvens. O filme passa em cópia restaurada.
"Dersu Uzala", de 1975, é uma produção exclusivamente soviética, falada em russo e dirigida por Akira Kurosawa. Aqui, Dersu, o protagonista que se torna um guia numa expedição, é também um mestre.
O filme é uma espécie de conto utópico sobre a interação entre ser humano e natureza. E um conto sobre a amizade e encantamento. Nada ingênuo, aliás. Uma espécie de antídoto contra as violências do mundo dos homens em forma de grande cinema.