Os astronautas americanos Suni Williams e Butch Wilmore finalmente devem retornar à Terra, encerrando uma missão que deveria durar oito dias e se estendeu por nove meses na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Mas eles não embarcarão na Starliner, da Boeing, como originalmente planejado.
Em vez disso, como Williams disse na semana passada em uma entrevista coletiva do espaço, "viajaremos no Dragon", uma cápsula feita pela SpaceX, de Elon Musk.
A mudança marca um forte endosso a um veículo que se tornou um cavalo de batalha das missões de tripulação e carga da ISS, e um lembrete humilhante para a atribulada Boeing dos problemas que têm afetado sua divisão espacial.
A Nasa decidiu em agosto que o CST-100 Starliner, que levou os astronautas à ISS em junho, não poderia ser usado devido a problemas nos propulsores e vazamentos de hélio que marcaram a jornada de ida.
Os engenheiros do grupo aeroespacial insistiram que a nave espacial era segura, e o retorno da Starliner, vazia, à Terra em setembro ocorreu sem incidentes. Mas a Nasa tomou uma decisão que diz "não confiamos em você", segundo um ex-diretor sênior da agência que trabalhou no projeto da Starliner, acrescentando que esse foi o exemplo mais flagrante da perda de confiança que agora marca o relacionamento da agência espacial com a Boeing.
A Nasa, que não criticou publicamente a Boeing, recusou-se a comentar.
A Boeing foi a parceira preferida da Nasa por décadas em seus programas mais desafiadores, com um legado que se estende desde o gigantesco foguete Saturn V dos anos 1960 que levou os astronautas da Apollo ao espaço até o design, construção e manutenção da ISS.
O projeto Starliner deveria ter provado a capacidade da empresa de operar em uma nova era espacial, na qual o setor privado, não a Nasa, é dono de foguetes e equipamentos e vende serviços de carga e tripulação para a agência espacial.
Desde o início, muitos funcionários da Nasa presumiram que a Boeing era a melhor aposta para entregar uma espaçonave confiável para transportar tripulação para a ISS como parte da competição lançada em 2010. Na rodada final em 2014, a Boeing ganhou US$ 4,2 bilhões em financiamento para desenvolver um veículo tripulado --US$ 1,6 bilhão a mais do que a concorrente SpaceX.
Porém, após problemas em série e atrasos que o deixaram cinco anos atrás da SpaceX, ele se tornou um símbolo do que deu errado nos negócios espaciais da Boeing.
A Boeing não separa as receitas espaciais da defesa, mas os analistas estimam que representem menos de 7% das vendas do grupo. No entanto, a empresa divulgou algumas perdas, incluindo um impacto acumulado de cerca de US$ 2 bilhões no projeto Starliner ao longo de seu contrato de preço fixo de dez anos e encargos de pelo menos US$ 315 milhões em um satélite comercial problemático.
Enquanto isso, seu trabalho para atualizar o núcleo do SLS, o foguete de espaço profundo da Nasa, tem recebido críticas do escritório independente que audita a agência espacial.
As críticas ecoam falhas reveladas na divisão de aeronaves comerciais da Boeing após os acidentes fatais do jato 737 Max em 2018 e 2019: uma mudança de uma cultura de engenharia para priorizar retornos aos acionistas, procedimentos de controle de qualidade deficientes e gestão questionável de preocupações com a segurança.
Em uma avaliação do upgrade do SLS publicada em agosto, o auditor da Nasa encontrou "um estado recorrente e degradado do controle de qualidade do produto", com a Boeing "não sendo responsiva em tomar ações corretivas" quando os problemas se repetiam. A Boeing disse em um comunicado que discordava "de muitas dessas afirmações".
Vários ex-executivos da Nasa que trabalharam com a Boeing tanto no projeto Starliner quanto no SLS falam de sua frustração na época com uma liderança da empresa que carecia de expertise em engenharia e que falhou em abordar as causas de atrasos e estouros de custos em grandes programas. Com muita frequência, disseram, a solução era pedir mais dinheiro.
A Boeing se recusou a comentar sugestões de que havia mudado de uma cultura de engenharia para uma que priorizava os retornos aos acionistas.
De acordo com Open Secrets, uma organização sem fins lucrativos que rastreia o lobby corporativo nos EUA, a Boeing consistentemente se classificou entre os 20 maiores gastadores entre 2010 e 2023. No mesmo período, a empresa recebeu mais de US$ 20 bilhões em contratos da Nasa, de acordo com o órgão de controle de gastos do governo.
Enquanto isso, Craig Garriott, líder do sindicato dos trabalhadores de satélite na fábrica da Boeing em El Segundo, Califórnia, está processando a empresa por negligência e retaliação após levantar supostas violações de segurança. Ele diz que os trabalhadores de satélite reconhecem as reclamações feitas por aqueles que constroem aeronaves: que o conhecimento da mão de obra qualificada foi erodido enquanto a empresa priorizava os retornos dos acionistas.
Os funcionários da fábrica na Califórnia são pressionados a trabalhar muito rapidamente e a assinar trabalhos que eles mesmos não completaram, disse Garriott ao Financial Times. "Acabamos fazendo uma tonelada de retrabalho", afirmou ele. "Acabamos acima do orçamento e atrasados no cronograma."
A Boeing disse ao FT que investigou o caso e contestou as alegações. "Temos políticas rígidas proibindo retaliação contra funcionários que levantam preocupações, e a Boeing não retaliou contra o sr. Garriott", disse.
Adel Al-Saleh, diretor-executivo do operador de satélites SES, cujos satélites O3b fabricados pela Boeing sofreram sérios problemas de energia elétrica em 2023, disse que sua empresa não viu evidências de problemas de qualidade. "Realizamos auditorias detalhadas da fabricação e de seus controles de qualidade", afirmou ele, insistindo que a falha dos O3bs se deve à sua complexidade.
No entanto, ele disse que a Boeing, assim como a maioria dos fabricantes de satélites tradicionais, não aprendeu a inovar rapidamente o suficiente em um ambiente espacial transformado pela SpaceX. Empresas tradicionais, acostumadas ao financiamento governamental, não estão acostumadas a lidar com prazos e orçamentos mais apertados, segundo ele.
Ex-diretores da Nasa dizem acreditar que a agência compartilhe a culpa com a Boeing pelos atrasos no programa. A Nasa, ainda assombrada pelas missões fatais do ônibus espacial, perdeu a confiança em gerenciar o risco necessário para entregar um projeto com segurança e no prazo, de acordo com Dan Dumbacher, que foi vice-administrador associado da equipe de exploração humana e operações da agência entre 2010 e 2014.